Esta história integra o projeto “Memória de Artista”, produzido com apoio da Lei Aldir Blanc, por meio da Secretaria Municipal de Cultura e Turismo da Prefeitura de Ribeirão Preto.
Respeitável público, que comece a história!
O teatro surgiu para Miriam Fontana fantasiado de estratégia. Aos 17 anos, não gostava muito da aula de Português. Junto com uma amiga, formularam uma ideia. Que tal transformar os ensinamentos do gênero dramático em peça de teatro? A professora topou!
De início, era só uma forma de ficarem fora da aula, que seria utilizada para ensaiar. Depois, recalcularam:
– Nós não queríamos pagar mico com a escola!
Então, a coisa ficou séria. Ela e a amiga se tornaram diretoras de uma trupe formada por “mau elementos”, como diz brincando para se referir aos outros alunos que, como as duas, estavam fugindo das aulas.
A fuga se transformou rapidamente em paixão.
– A peça foi um sucesso! A gente apresentava de manhã, tarde e noite! E, então, o grupo da cidade ficou sabendo!
Convidaram Miriam para conhecer mais sobre o teatro. Ingresso só de ida para uma trajetória que já soma mais de quatro décadas sem planos de encerramento.
– O teatro é algo que te fisga e você não escapa e nem quer escapar, porque reconhece ali um modo de vida, um valor. Por mais que nossa trajetória nesse país seja uma luta, quem mergulhou dificilmente quer sair.
Miram nasceu em Salto, interior de São Paulo, e acredita que vem de sua cidade natal o encantamento pelas histórias das águas do rio Tietê, tema de seus mais novos trabalhos.
Os pais se mudaram algumas vezes, passando por Indaiatuba e Itu. Aos 19 anos, já encantada pelo teatro, mas um tanto confusa com a vida – como é praxe da idade – entrou na faculdade de Estatística, na Unicamp.
Para quem já tinha o coração fisgado pelas artes, o desgosto foi imediato. Deixou o curso no final do segundo ano e foi para Pedagogia. Somou, então, o ensino ao palco, como professora de teatro.
Quando se formou pedagoga, o curso de Artes Cênicas havia iniciado na Unicamp. Somou o trabalho às novas aulas e conheceu a turma que deu origem ao grupo dono de seu coração.
– O Fora do Sério se formou na Unicamp, em 1988, com a peça “Arlecchino”, de Dario Fo, dirigida por Neyde Veneziano. Quando vieram para Ribeirão, eu vim junto.
Partiu em 1991, antes de terminar a faculdade de Artes Cênicas, mas já cheia de convicção. O grupo nasceu para estudar a “commedia dell´arte” e decidiu migrar para o interior, onde a vida era mais possível.
– A formação original não se sustentou. Eu sou a mais antiga desde a fundação. A que ainda permanece.
Aos poucos, foram encontrando formas de viver o teatro. No início, instituíram a exclusividade do Fora do Sério. Vivendo juntos no 6º andar do Edifício Diederichsen, só podiam trabalhar com o grupo. As dificuldades de se sustentarem foram surgindo e as mudanças se fazendo necessárias.
Miriam acompanhou tudo, viveu todas as fases e foi se tornando guardiã da memória do projeto. O espaço onde vive é metade casa metade coxia. Guarda ali os cenários, figurinos: toda uma história materializada.
– Se eu pego uma ideia, não desisto fácil. A herança ficou comigo.
A artista foi somando outras cenas à trajetória, como bem exige o palco. Se tornou contadora de histórias, somou peças e apresentações. Esteve na gerência artística do Theatro Pedro II entre 2001 e 2004, trazendo a Ribeirão Preto agenda nacional e internacional de espetáculos.
– Foi muito intenso e maravilhoso!
Trabalhou como professora e coordenadora do curso de teatro na Barão de Mauá. Ajudou a organizar dois importantes encontros de teatro na cidade, em 1991 e 1993. Hoje, com a sabedoria que só a maturidade traz, afirma:
– Sabe aquela frase: ‘Só fizeram porque não sabiam que era impossível?’. Quando você é jovem, não vê o perigo! Se lança! Foi tudo feito por correio, sem internet, com pouco telefone, sem recursos.
O 1º e o 2º Encontro Brasileiro de Teatro de Grupo saíram, com participações de artistas e grupos do país todo!
– Foi um momento mágico dessa história. Juntamos forças com a cidade e o estado com a vibração de fazer acontecer. É isso que eu valorizo demais na vida: a experiência! Quando você verdadeiramente experencia algo de valor, isso entra em você de uma maneira tão forte que te faz capaz de realizar feitos.
E, então, diz compreender o poder das histórias. As que conta e as que encena no palco, “linhas paralelas de uma mesma engrenagem”.
– As histórias nos fazem viver e reviver experiências. Experiências que podem transformar as coisas, trazer luz.
Com seu companheiro de vida e de trabalho criou a “Casa da Arte Multimeios”.
Em plena pandemia, encontrou formas de se manter em movimento, fazendo arte virtual, lançando novos projetos, improvisando, como tanto requer o palco.
– Trabalhar com cultura é ter o sorriso no rosto de viver a arte e saber que até o último dia da vida esse será o meu discurso. É não desistir jamais!
As dificuldades são muitas, ela bem sabe. Se acumulam, se multiplicam.
– A cultura é vista com desconfiança, não como vitrine. Ter a cultura como prioridade traz desenvolvimento para a sociedade como um todo. Sem dúvida, a sociedade seria mais equilibrada e justa se as pessoas tivessem a cultura em suas vidas, porque a cultura envolve o coletivo.
Depois de 43 anos, a barriga continua a congelar sempre que uma nova apresentação se aproxima. O teatro, ela diz, é desafio. É tornar possível a comunicação entre aquilo que se pretende comunicar e os sentidos que o público estabelece.
– Apontar o dedo afasta o interlocutor, mas se você diz por meio da fábula, aproxima as pessoas.
Conta, então, a história da verdade que só entrou pela porta do palácio fantasiada de fábula. Viver de arte é levar um tipo sublime de verdade pelas portas da alma de cada olhar encantado.
– É como cada um interpreta. É tudo expressão. O que a gente quer? Conversar, se comunicar, entender e ser entendido. Nem sempre a gente consegue comunicar o que quer e nem sempre somos compreendidos.
Completou 60 anos em plena pandemia. Deixou os cabelos branquearem, dando forma de fios ao tempo que passa.
– A gente está aqui para desvendar esse mistério da vida e a arte faz isso.
Parar não está em nenhum roteiro, ainda que seja necessário aprender a fazer teatro à distância, reinventar quatro décadas de prática. Desde aquela primeira peça, que se fantasiou de estratégia para fugir da aula de Português, entendeu que amar o palco é uma decisão que não se sustenta em superfícies.
– Eu não faço arte pelo sucesso, por busca exterior, mas a arte sempre foi minha companheira nessa busca interior. Eu acredito muito no trabalho. Cada um oferece seu trabalho para que esse coletivo, que é o mundo, seja melhor.
As cortinas se fecham. Mais uma história termina para que outra possa começar.
Adorei conhecer um pouco mais da história de vida da Miriam Fontana, quem admiro como pessoa e como artista e muito tenho aprendido sobre contação de histórias.
O Teatro é uma arte escrita ao vento!!! Linda história de vida!!! Parabéns companheira!!!