Esta história integra o projeto “Memória de Artista”, produzido com apoio da Lei Aldir Blanc, por meio da Secretaria Municipal de Cultura e Turismo da Prefeitura de Ribeirão Preto.
“Vai, vai, vai começar a brincadeira
Tem charanga tocando a noite inteira
Vem, vem, vem ver o circo de verdade
Tem, tem, tem picadeiro e qualidade”
– Onde você vai, Pirombeta?
Era assim que a tia chamava a meninada, sem imaginar que, com o nome carinhoso, estava batizando uma palhaça.
Décadas depois, quando mergulhou no universo palhacístico, Fernanda Sotto resgatou das memórias o nome da personagem. Pirombeta nasceu assim, cheia de afeto. E com outras doses de afeto foi se transformando em uma palhaça toda singular.
A maquiagem foi criada pela artista, com vermelhos ressaltados na bochecha. O jeito de falar mistura o português com um espanhol todo (re)inventado pela criatividade. Mais uma vez, Fernanda foi buscar vestígios na memória.
Sua bisavó, Encarnacion Inhesta, veio da Espanha. Fernanda, desde pequena, se encantava pelo falar. Pirombeta fala com nuances de espanhola e muito humor de brasileira.
– Eu quis trazer tudo isso, que são referências da minha vida, para a Pirombeta.
Então é assim que nasce um palhaço e uma palhaça?
– A meditação é entrar em contato consigo mesmo, não é? O palhaço também é isso! É uma autodescoberta que, para mim, leva a um lugar de muito prazer. Você vai descobrindo como reage com situações inesperadas, como lida com outros palhaços e com público.
Essa história de palhaça nasce beeeeeeemmmm antes, quando a Fernanda pequena enfrentava seu primeiro palco, com um corte enorme no braço.
Aos sete anos, se descobriu artista com um desafio tamanho à profissão. Foi um batismo e tanto! Foram apresentar uma peça de Natal na escola e fizeram um piquenique para celebrar. Fernanda subia as escadas com duas garrafas de guaraná.
Tropeçou, caiu e os cacos cortaram seu braço. “Vamos para o hospital!”, a escola se alvoroçou. Mas a menina não arredou pé. “Só depois da apresentação!”.
– Eu não queria que acabasse nunca a apresentação para não ter que ir para o hospital!
Relembra entre risos os cinco pontos que levou quando a peça chegou ao fim.
Começou ali a jornada, na cidade de Catanduva, onde nasceu. Estava sempre presente! Nos festivais de poesia do ginásio, nas apresentações e nos cursos de contraturno. Escolheu artes cênicas, como se pode imaginar.
Entrou na faculdade de Artes Cênicas da Barão de Mauá e se mudou para Ribeirão Preto em 2001. Já formada, em 2004, fez as malas e partiu para São Paulo.
– Aqui não tinha essa efervescência. Quase toda a minha turma foi para lá.
Foram seis anos de muito teatro, freelas, trabalho e desencontros.
– Eu dei uma afastada… estava ficando doente!
Voltou para Catanduva e ficou seis meses, até retornar para Ribeirão e se tornar parte do grupo Engasgagato.
– Ali a gente fez muita coisa! Teatro, produção de espetáculos!
Quando o Engasgagato deixou o Diederichsen, Fernanda foi para o Forte Voador. Em 2016, com Gabriel, seu companheiro de vida e de palco, criou a Cia Zero, que soma teatro, contação de histórias, palhaçaria, circo e um pouco do que cada um carregou na bagagem da trajetória.
Foi nessa época que os dois decidiram mergulhar mais no universo do circo e resgatar o palhaço que, de alguma forma, já morava lá dentro.
– Comecei a amar esse universo. Coloquei uma lupa nessa Fernanda. Sempre tive uma relação muito forte com o riso. Era aquela que imitava o professor, fazia piadas na roda de amigos. Isso se amplificou.
Uma palhaça não nasce de um dia para o outro, ela explica. É um processo, de descoberta que nunca acaba.
– No palhaço é tudo seu, tudo criação sua, muito particular. E isso é muito legal, porque cada um é de um jeito.
Se o riso não sai, é preciso mudar de rota e calcular bem rápido o novo trajeto.
– Pode ser o mesmo espetáculo, se mudar a plateia, muda tudo. É um processo. Não é tudo que funciona. Tem muito improviso que a gente pega para ficar, porque dá certo.
O artista tem que ir aonde o povo está? O palhaço vai!
A Pirombeta se apresenta em teatros e praças. E aí, são dois cenários bem distintos, ainda que a cenografia seja a mesma.
– A rua é totalmente diferente de um lugar com horário marcado. Você tem que chamar seu público. Quando chega no local já começa um movimento para despertar a curiosidade e fazer esse público vir.
E quando o espetáculo termina e tudo saiu bem?
– Eu quero mais! Quero sempre estar nesse estado de contato com o público!
Em tempos de pandemia, foi preciso se adaptar. A Cia Zero criou espetáculos on-line, vídeos e teve até uma olimpíada de palhaços – já que a dos atletas foi cancelada.
Fernanda, Gabriel e uma integrante mais que especial. A filha do casal, Ana Rita, já tem até nome de palhacinha: “Meira-cura”, pelo cheirinho de leite tão peculiar dos bebês.
Ela tem dois aninhos e, quando os pais gravavam, insistia em aparecer. Então, se tornou parte da equipe. Por trás da Pirombeta, afinal, mora uma Fernanda que é mãe, mulher e outras tantas coisas.
– Antes, não havia mulheres na palhaçaria. Hoje, já temos cursos de palhaçaria feminina! Esse lugar é nosso também!
Aos sete meses de vida, “Meira-cura” assistiu ao seu primeiro espetáculo. Hoje, já soma mais do que muita gente grande e cheia de anos no documento. Será que vem outra artista por aí? Não vai faltar torcida!
E o palhaço, o que é?
– Para mim, é meu eu amplificado, que vai levar amor e alegria e também o riso e a reflexão, porque tem muita coisa no palhaço que a gente se identifica. Não deixa de ser uma continuação do ser.
“Vai, vai, vai terminar a brincadeira
Que a charanga tocou a noite inteira
Morre o circo, renasce na lembrança
Foi-se embora e eu ainda era criança”
*Música “O Circo”, interpretada por Nara Leão
Crédito das fotos
Destaque: Acervo Cia Zero
Fotos 1: Sté Frateschi
Fotos 2 e 3: Ramon Santana
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