Para entender a Bíblia, Damiana aprendeu a ler sozinha aos 50 anos

6 setembro 2019 | Gente que inspira

Esta história foi narrada pelos integrantes do projeto Doadores de Voz, dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Unaerp. Para ouvi-la, é só clicar no play:

 

Vale a pena ler de novo! História publicada pela primeira vez em 19 de maio de 2018. 

 

Damiana abre a Bíblia, escolhe uma passagem e começa a leitura. Palavra por palavra, bem devagar, vai narrando as frases.

Foram quase 50 anos de espera para realizar o sonho de aprender a ler. Hoje, aos 90 – 91 no mês que vem – não tem pressa, então. Traduz cada palavra no tempo de quem passou anos juntando uma letra na outra para descobrir o sentido dos escritos.

Foi assim que, sozinha, ela decifrou o abecedário. Não lembra a data exata, mas sabe que tinha quase 50 anos de vida quando comprou a Bíblia, em uma igreja da Vila Virgínia.

Conta que passou anos somando uma letra na outra, e uma sílaba na próxima, até conseguir ler a primeira palavra. Tudo o que tinha de conhecimento anterior estava nos poucos meses que pôde ir para a escola.

– Foram muitos anos para ler uma frase. Mas, enquanto eu não consegui, não sosseguei. Não tive ajuda de ninguém. Só eu e Deus.

Damiana Neris da Silva Santos nunca aprendeu a escrever mais que seu próprio nome. Mas decidiu que iria conseguir ler as frases da Bíblia.

– Com sete anos minha mãe já me levava na igreja. Eu queria entender qual era a regra da igreja. Então, fui ajuntando as letras. Não correndo, mas devagar. Leio devagar e entendo tudo.

Todos os dias, então, ela abre sua companheira – a mesma Bíblia de 50 anos atrás – e lê um trecho. Terminou todo o Velho Testamento. E faz a leitura do Novo.

É que, no meio do percurso, surgiram outras leituras a se fazer. Para incentivar a trajetória literária da avó, uma das netas criou o hábito de lhe presentear com livros.

No acervo de Damiana tem José de Alencar, Clarice Lispector, Cora Coralina, Jorge Amado, Ernest Hemingway…

– Romance eu leio, mas não é meu sonho. Meu sonho é história! “O velho e o mar” eu adoro porque tem história! Seara Vermelha, as poesias da Cora Coralina… A gente não viaja quando está lendo? A gente esquece tudo daqui! O melhor do mundo é quem sabe ler!

Damiana aprendeu a ler sozinha História do Dia Ribeirão Preto

Damiana nasceu no interior da Bahia, região de Cana Brava, em um tempo de partos em casa e famílias com dezenas de filhos. Seus pais tiveram 14. E ela era a mais velha, “entre os que ficaram vivos”, como diz.

Naquele tempo, também se perdia muita criança por falta de atendimento em saúde.

Aos 7 anos, ela começou a ajudar no trabalho, também seguindo o costume.

– Você sabe: naquela época, os pais levavam a gente para a roça!

Só entrou na escola aos 15 anos. Ficou por alguns meses e aprendeu a assinar seu nome. Mas logo teve que sair.

Conheceu o marido aos 19, em um dia de Natal. Ficaram juntos por quase meio século e tiveram seis filhos.

Damiana, com toda sua força, enterrou três filhos. E o marido, quando já viviam em Ribeirão Preto.

Deixaram a Bahia em busca de uma vida melhor, em meados da década de 50. Passaram um tempo em São Paulo, depois foram para Barretos, onde montaram uma banca de verduras no Mercado Municipal. E onde Damiana tentou voltar a estudar, na escola para adultos.

– Meu sonho era ser estudada, para ajudar as pessoas que não sabem nada. Eu sei o quanto é triste não saber nada.

Mais uma vez, o tempo de escola durou pouco. A família mudou de bairro e ela teve que deixar o sonho de lado, entre muito trabalho e o cuidar dos filhos.

Depois que saiu da roça, diz que trabalhou como faxineira, lavadeira e passadeira. Durante 20 anos, prestou serviços para a mesma família.

Mudaram para Ribeirão quando ela tinha quase 40 anos. Pouco depois, comprou a Bíblia e começou a juntar as letras.

– Eu era cega, por bem dizer. Depois que eu consegui entender as palavras, foi uma felicidade grande.

Damiana aprendeu a ler sozinha História do Dia Ribeirão Preto

Faz cerca de três anos, Damiana passou a frequentar um grupo de idosas ali no bairro onde mora. As mulheres se reúnem para bingos, festas e viagens.

– Eu conheço o mar. Já fui três vezes! No ano passado, entrei até na piscina, que nunca tinha entrado.

O sonho da leitura foi o mais grandioso da vida. Mas ela está certa de que é preciso aprender sempre.

– Quanto mais a gente vive, mais a gente aprende. Ainda tenho muito para aprender!

As leituras são diárias. Mas atualmente uma outra paixão toma o seu tempo.

– Eu faço crochê também. Então, às vezes paro o livro para fazer bicos no pano de prato. Depois volto. É assim…

Damiana aprendeu a não ter pressa.

Faz as contas de quão grande é a família: nove netos, 13 bisnetos e cinco tataranetos.  E conta, orgulhosa, que no último Dia das Mães todos estiveram reunidos.

– É todo mundo simples, sabe? E nesse dia eles falavam: “Vó, você que colocou a gente nesse caminho do bem!”.

Eu não senti vontade de ir embora – mesmo sabendo que a entrevista já chegava ao fim. Damiana, com seus 91 anos de histórias, faz a gente querer ficar pertinho, ouvindo o que ela tem a dizer entre ensinamentos e brincadeiras.

– Quantos anos você tem? 29? Ih, tem muita coisa para aprender! Muito a viver para frente!

Vai me avisando.

Diz que está sempre rodeada de netos, bisnetos, tataranetos. E não tem falsa modéstia:

– É porque eu amo muito eles. E sinto que eles me amam também. Mas eu sei dar amor. Não sou daquelas que só implicam. Não sou de brigar.

Relembra que passou muita fome na infância, fugindo da seca baiana com os pais. A vida foi sempre de luta.

– Mas eu não sinto desgosto, tristeza. A vida é assim. Depois, tudo melhora. Eu fui bem!

Lendo no seu tempo as frases da Bíblia, os poemas de Cora, as histórias de Jorge Amado, sente que a vida está completa.

– Eu me sinto realizada. O estudo é tudo na vida da gente. Você pode ser pobre do jeito que for, se tiver o estudo, tem tudo. Primeiro lugar é a saúde, depois o estudo.

Damiana esbanja os dois. Tem saúde de sobra e um tipo de conhecimento raro.

É especialista em entender a vida. Decifra sentidos além das palavras. E, claro, através delas também.

 

*Quer traduzir essa história em libras? Acesse o site VLibras, que faz esse serviço gratuitamente: https://vlibras.gov.br/

 

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