Texto: Daniela Penha – Fotos: Tatiane Silvestroni – Ilustração: Cordeiro de Sá – Produção: Vandreza Freiria
Foi coisa de adolescente? Cláudia Pereira Bento, 47, diz que sim.
A fuga de casa aos 14 anos lhe custou muito. Mas também trouxe muito aprendizado. Hoje, ela agradece pela trajetória trilhada.
– A vida vai nos levando por caminhos… Talvez se eu não tivesse passado por tudo isso, não teria evoluído.
Deixou a cidadezinha onde cresceu, no interior do Mato Grosso do Sul, com o namorado. Partiram para São Paulo sem saber o que iriam encontrar.
Criada na roça, não fazia ideia do que a esperava na frenética paulicéia.
– Eu só pensava o seguinte: pelo meu grande amor, moro até debaixo da ponte. Quando a ficha cai você vê que não vai se assujeitar a isso. É ilusão. E também vê que não era o grande amor. E talvez isso nem exista. O que existe é a parceria, a boa convivência.
Encontrou um tanto de desafios. Viveu e enfrentou a violência doméstica, teve duas filhas, precisou se reinventar para cuidar delas e de si. Terminou o Ensino Médio, fez trabalhos como voluntária, viajou para outros países, cursou duas faculdades, pós- graduação, especialização.
Nesse percurso, descobriu que dois é mais do que um. Trabalhando pela comunidade onde vive, Várzea Paulista, na região de Jundiaí, se encantou pela potência que é a coletividade. E, então, seguiu compartilhando e construindo união.
Há 10 anos, atua na associação filantrópica PAIM (Programa de Atendimento e Integração Maria Tereza Rebello), uma das cadastradas no Mesa Brasil Sesc Jundiaí.
Para ajudar a transformar ainda mais, se formou professora e desde 2019 está em sala de aula, na mesma comunidade que chama de “sua”.
– Ali eu tenho a oportunidade de mostrar que nós não estamos condicionados a uma realidade. A gente pode fazer diferente.
O que era fuga por amor adolescente se transformou em uma grande jornada que, ela garante, não está nem perto do fim. Os planos para o amanhã são muitos!
A cidadezinha se chama Ivinhema. No interior do Mato Grosso do Sul, hoje tem 23,2 mil habitantes. A roça parecia o caminho determinado para os filhos que já nasciam no trabalho com a terra.
A escola primária era ali, na área rural. Os alunos da primeira à quarta série estudavam juntos, na mesma sala, com um único professor. Depois, quem quisesse continuar estudando, tinha que andar 10 quilômetros até a escola, na cidade. E voltar pelos mesmos 10 quilômetros.
Cláudia quis. A simplicidade da família de nove filhos fazia com que as irmãs precisassem revezar os sapatos. A que ia na escola pela manhã esperava a outra, que ia à tarde, na metade do caminho. Pegava o chinelo e deixava os sapatos.
Os materiais eram carregados no saco de arroz. E na escola, a única da cidade, estudavam crianças de todas as famílias, ricas e pobres.
Aos 12 anos, Cláudia já trabalhava como babá no contraturno escolar. Em casa, a rotina com a família era conturbada.
– Eu apanhava por tudo e por nada. Sempre tive uma personalidade forte. Minha mãe dizia: ‘Não é para tomar banho no rio’. Eu tomava.
O namoro começou quando ela tinha 12 anos e ele 13. Eram vizinhos. A mãe chegou a lhe mandar para São Bernardo, em São Paulo, por uns tempos, na tentativa de amenizar os ânimos. Não teve jeito. Cláudia logo voltou para casa – e para o namorado.
Quando ele sugeriu que fugissem, o “sim” foi imediato.
– Eu já queria sair daquela vida de violência… topei sem pensar no depois.
Um depois feito de muitos desafios.
– Logo que eu cheguei em São Paulo vi a bobagem que tinha feito…
Ficou quatro anos sem falar com os pais.
Em São Paulo, os dois precisaram dar conta de sobreviver. Viviam na casa dos irmãos dele, faziam trabalhos informais.
– A gente não podia nem trabalhar, até termos 18 anos. Eu trabalhava como babá e ele como servente de pedreiro. Meti os pés pelas mãos! Casar ao invés de estudar!
Os desencontros começaram já aí. E foram aumentando.
Aos 18 anos, os dois conseguiram trabalho em uma grande empresa de sapatos. Cláudia teve a primeira filha aos 21 e a segunda aos 23. Pouco antes, a empresa saiu de Jundiaí para o nordeste e ela ficou desempregada.
A relação em casa foi ficando insustentável. A violência era física e psicológica. Em meio a esse caos, ela decidiu que era necessário terminar o Ensino Médio.
– Se eu não estudasse, iria sobrar para mim o que havia de pior. Eu queria provar para mim mesma que não era o que ele falava: ‘Você é burra! Nem emprego você arruma’. Fazer diferente com minhas filhas.
Quando decidiu se separar, estava com 24 anos e as filhas tinham menos de três.
– Larguei tudo e fui embora com elas.
Foi morar em Várzea Paulista, com sua irmã. E não deixou mais a comunidade.
Se casou novamente três anos depois, e segue com o companheiro até hoje. Teve, então, mais dois filhos. Os quatro pequenos foram acompanhando a trajetória de estudos e transformações da mãe.
A faculdade deixou de ser uma ideia para se tornar um projeto depois que ela fez parte da Rede Interação, uma ONG que trabalha pela transformação de comunidades carentes.
– A prática é maravilhosa, mas a gente precisa estar fundamentado na teoria.
Em 2006, aos 31 anos, Cláudia passou a ser voluntária nas ações. Ajudou a mapear as famílias e problemas do bairro para, então, buscar políticas públicas de mudança. Na época, constataram que havia ali cerca de 3,9 mil famílias, com mais de 12 mil pessoas, vivendo sem esgoto, asfalto, saúde ou lazer.
Com organização comunitária, conseguiram levar infraestrutura para Várzea Paulista, com escola, UBS, CRAS, centro comunitário, rede de esgoto, entre outras mudanças.
– Tudo isso com a nossa mobilização. A gente procurava um espaço onde pudesse se construir aquilo, desenhava o projeto, buscava realizar. Isso despertou em mim a coletividade. Minha vizinha também vive os mesmos problemas que eu.
Junto com a ONG, Cláudia viajou para outros países com o objetivo de ajudar a implantar a mobilização comunitária e buscar melhorias com os governos. Esteve na África, Bolívia, Filipinas. Conheceu realidades ainda mais duras do que a sua.
Na África, 70% da comunidade na qual trabalharam era HIV positiva. Nas Filipinas, não havia qualquer acesso à saúde. Na Bolívia, as pessoas não tinham sequer banheiros.
– Isso contribuiu muito para que eu pudesse repensar e ver que o conhecimento faz toda diferença. Quando você fala com propriedade, você tem credibilidade e consegue dialogar com os governos, ser ouvido.
Em 2009, aos 34 anos, começou a faculdade de Serviço Social. E não parou mais: fez pós-graduação, especializações e, mais recentemente, a graduação de Pedagogia. Se envolveu na área política, gestão de cidades.
– O conhecimento te transforma e te dá oportunidade de transformar as pessoas.
O trabalho na PAIM começou em 2012, junto a tantas transformações. Ela entrou na instituição para atuar por apenas algumas horas, foi se encantando e hoje é coordenadora. Faz um pouco de tudo, na busca por estruturar a entidade, acolher as famílias, encontrar recursos.
A PAIM presta serviços de convivência e fortalecimento de vínculos para crianças e adolescentes no contraturno escolar. Oferecem aulas de música, dança, esportes, acompanhamento psicológico, acolhimento familiar para 50 pequenos.
– Nós queremos que eles estejam aqui, distantes da realidade do tráfico de drogas, da realidade das ruas.
Os meninos e meninas passam ali o período em que não estão na escola. A instituição oferece café da manhã, almoço e lanches. Por isso, é uma das cadastradas no Mesa Brasil Sesc Jundiaí.
Cadastrada desde maio de 2019, a entidade já recebeu mais de 18,5 toneladas de alimentos.
Cláudia enfatiza que a alimentação vai além de nutrir o corpo.
– Com o Mesa Brasil eles têm acesso a alimentos que não teriam em casa. Podem comer frutas, verduras, legumes.
Desde 2019, ela divide a rotina de trabalhos na PAIM com a sala de aula, como professora de Sociologia em uma escola estadual de Várzea Paulista.
Escolha feita pensando na mudança que acontece quando a união é realidade.
– Eu tenho a oportunidade de, a partir do meu conhecimento, transformar mais pessoas. Procuro mostrar a eles que o que rege nosso compromisso com a sociedade é a coletividade. A gente não é uma ilha. Tem que estar bom para mim e para todo mundo.
Chega? Nada disso!
– Realizada? Me sinto! Com o que conquistei até agora, mas ainda tenho mais a fazer.
Agora, ela planeja cursar Psicologia. O aprendizado contagia.
– O conhecimento nos possibilita mudar a vida das pessoas e mostrar que elas também podem buscar seus sonhos.
Então, ela segue. Aprendendo e ensinando!
Conheça mais sobre o Mesa Brasil
Que tal criarmos uma ponte entre quem precisa de ajuda para matar a fome e quem pode e quer fazer o bem? Uma ponte que consiga unir essas duas pontas, fazendo com que os alimentos que sobram para um cheguem à mesa do outro?
É isso que faz o programa Mesa Brasil, criado pelo SESC SP há 27 anos e presente em todo o país.
Caminhões coletam diariamente doações de alimentos com empresas, supermercados, cerealistas, produtores, entre outros fornecedores e entregam para instituições sociais e hospitais. Só em São Paulo são 30 caminhões circulando todos os dias para atender 95 cidades paulistas.
Realizando a coleta e a entrega dos produtos, o Sesc São Paulo facilita o caminho para quem quer doar e garante que toneladas de alimentos que seriam desperdiçados cheguem à mesa de quem precisa: uma rede de combate à fome!
Em 2021, foram 1341 instituições sociais beneficiadas, além de milhares de famílias que levam alimentos direto para suas casas. As 1191 empresas doadoras fizeram 6,4 milhões de quilos de alimentos chegarem à mesa de quem precisa.
Em Jundiaí, o programa foi implantado em maio de 2019 e já distribuiu mais de 706 toneladas de alimentos, para 44 entidades cadastradas. Ao todo, quase 9 mil pessoas foram beneficiadas pela solidariedade de 63 instituições doadoras.
O projeto “Gente que Alimenta” conta as histórias de quem faz esse programa do bem acontecer: doadores e instituições que precisam de apoio para continuarem suas atividades.
Quer saber mais sobre o Mesa Brasil? Quer se tornar um doador? Acesse o SITE AQUI e se encante ainda mais com esse bonito programa!
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