Esta história foi produzida em parceria com o grupo de estudos Gepalle!
Para Ana Carolina, educação e cultura dançam juntas, sincronizando os passos em bonita coreografia. Na primeira aula que ministrou, ainda adolescente, ensinou às crianças passos de ballet. Descobriu assim o querer pelo ensinar.
Chegou a entrar na faculdade de Psicologia e a cursar um período. Durante uma aula, o professor questionou o real desejo dos alunos, o que lhes motivava a estar ali. Ana levantou-se da cadeira, agradeceu pela fala e anunciou: “Descobri que meu negócio é dar aula! Não quero outra coisa!”. Depois, partiu. Cancelou a matrícula e mudou o rumo.
Iniciativa, afinal, era acorde que já compunha seus arranjos. Esteve até em picadeiros! “Dancei no circo do Marcos Frota!”, ela conta e faz arregalar os olhos. A história que relembra é resumida, diz. Garante que tem muito mais! São muitos causos e contos que a trajetória entre as aulas e os palcos traz.
– A arte me ensinou a ver o mundo de um jeito diferente; me ensinou a ver a vida de outra perspectiva.
Como resultado de tantas vivências, se constituiu professora-artista, que acredita na singularidade de cada aluno, na aula feita de movimento e barulho, na subjetividade que ganha espaço quando a criança é apresentada ao vasto mundo do encantamento.
– A arte traz a união do sensível com o inteligível. Quanto mais você desenvolve o sensível, mais entende das coisas do mundo. A arte abre as pessoas.
Do circo, carregou um dos grandes aprendizados sobre o ensinar. Guardou na mala da vida e, todos dias, dá uma espiadela para relembrar.
Havia um palhaço que ensaiava um número e nunca o apresentava. Para Ana Carolina, já estava pronto, excelente. Para o artista, ainda não. “Cada vez que uma plateia entra, são pessoas diferentes e eu não posso errar naquele momento”, explicou e fez Ana entender:
– Veja como o olhar sai de si e vai para outro… quando eu ensinava alfabetização, sempre incentivava o aluno a pensar para quem gostaria de mandar uma carta, com quem gostaria de falar. Se ele não tiver um motivo real, sensível, não vai aprender. Mas se tiver, vai sempre se lembrar.
Quando tinha por volta dos 9 anos, Ana Carolina de Picoli de Souza Cruz, 49, começou a fazer aula de ballet. Se encantou ao primeiro plié. Pouco depois, porém, seus pais se separaram, a rotina ficou tumultuada e foi preciso deixar as aulas. Não deixou a vontade de dançar silenciar.
Aos 15 anos, reencontrou a professora da infância, que lhe arranjou uma bolsa de estudos para retomar. Voltou e logo começou a ensinar junto ao aprender.
Trabalhou em uma escolinha, cuidando do recreio, ensinando musicalização, expressão corporal. Começou a dar aulas de dança.
Fez o magistério e se formou em 1989. Na época do vestibular, pensando em seguir a Psicologia, se mudou para Campinas. Voltou certa de que o caminho era a sala de aula.
Fez Letras, trabalhou em escolas particulares e entrou no concurso para professora da rede municipal de Ribeirão Preto em 1999, aos 29 anos. Em 2008, passou a trabalhar com formação de professores e segue até hoje, ajudando na elaboração de planos curriculares, buscando implantar projetos e cultivar uma educação, de fato, transformadora.
Nos primeiros anos de aulas, continuou dançando.
– Mas aí a vida começou a ter seus percalços…
Vieram os dois filhos, que hoje têm 27 e 20 anos, a rotina foi ficando mais corrida, as demandas no trabalho aumentaram. Ana se distanciou um pouco dos palcos. Mas só um pouco. A arte faz parte de suas práticas como professora e como formadora de outros professores.
– Eu nunca tive problemas em reunir cinco, seis turmas no pátio da escola e ficar com eles. Eu encontrava atividades para todos!
A professora Ana Carolina já foi maestra, intérprete de tudo quanto é obra, propulsora de mudanças. Conta da aluna que nunca ficava quieta e ficou vidrada na peça em que Ana se vestiu de Emília. Do menino que não aprendia as matérias convencionais, mas tinha um talento expressivo para o desenho. Ana buscou uma bolsa e conseguiu que ele fosse desenvolver sua aptidão. Do aluno que nunca parava e participou do festival de encerramento com destreza.
– Ele entrou e fez tudo! Tinha inteligência corporal. Eu sempre trabalhei com esse olhar das diferentes inteligências. Não tem um aluno que não aprende, mas que aprende diferente, de outra maneira.
Relembra também a pequena Lorena que, na pré-escola, deu sentido ao poema de Fernando Pessoa. Quando Ana Carolina anunciou que trabalharia o poeta com crianças tão pequenas, a resposta das outras professoras foi surpresa e descrença. “Ah, não vai dar certo”. Ela prosseguiu. Leram “Autopsicografia”:
“O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente”
Ao final do trabalho, Lorena explicou para a professora o que compreendeu: “Esse poeta é um mentiroso, né?”.
– Ela entendeu a mensagem do poeta. Sempre preguei isso nas formações: a gente não pode deixar de ensinar conceitos para a criança. Temos é que ter um olhar avaliativo diferente. Uma criança da pré-escola vai assimilar Fernando Pessoa de um jeito diferente do que um aluno do colegial. Tudo é uma questão de adequação.
Passou a dar aulas na rede municipal em 1999. Por volta de 2002, criou o projeto “Arte em ação”, com aulas de dança em três escolas, no período de contraturno das aulas regulares. Postura, consciência corporal, autonomia: ela era exigente. Acredita na capacidade das crianças.
– Eu nunca defendi que o professor entre no palco com a criança. Ela é capaz de aprender, decorar. Eu montava as coreografias com elas, a partir de movimentos que elas davam e que faziam sentido para elas. Assim, elas aprendiam.
Nas aulas, música clássica de fundo para exercícios e momentos de reflexão. O silêncio nunca foi regra.
– Minha vida sempre foi música. Se não tinha rádio na escola, eu levava o meu.
Em 2008, foi para a equipe de formação de professores da Educação Infantil e em 2018 passou a atuar na equipe do Ensino Fundamental 1. Busca levar para os professores suas vivências e a educação na qual acredita.
– O que eu posso fazer? Eu não posso mudar o mundo, mas posso me mudar e o espaço onde eu estou.
Em meio ao ensinar, não deixou de aprender. Fez mestrado em estudos literários e hoje é aluna do doutorado na Unesp, pesquisando linguística.
Encontra brechas para se colocar, vai tentando transformar as burocracias do sistema em ação. Recentemente, implantou um módulo de literatura para a formação dos professores. Leva contos, crônicas, letras!
– Aprender pelo amor é quando você ouve a experiência do outro e acata. O que dói é o fato de as pessoas não estarem abertas para a experiência do outro.
Em um período tão conturbado, de pandemia, isolamento, aulas on-line, busca manter a fé. Diz que acredita muito no ser humano.
– A humanidade precisa passar por um momento de reavaliação de tudo e no Brasil nós precisamos encontrar um ponto de equilíbrio. Organizar as gavetas da economia, da educação, da administração.
Já vai fazendo planos para quando tudo isso passar. Em 2014, voltou para o palco, participando de uma apresentação, e se surpreendeu com a energia que seu corpo guarda. Então, pensa em retornar a praticar dança quando o isolamento se tornar história. É sempre tempo de aprender e ensinar.
Relembra mais um aprendizado lá do circo.
– Se você consegue sair da sua perspectiva e olhar para o outro não interessa a cor dele, a raça. Interessa que ele está lá para ver um espetáculo lindo.
Vida (re)visitada pela arte. Educação de cortinas sempre abertas.
Fotos: arquivo pesssoal
Excelente matéria. Você mostrou -se bem como é . e que pessoa definida.
“Acredita na singularidade de cada aluno”
“Propulsora de mudanças” vi bem isso em você.
Feliz por ser amigo de vocês
Um abração e continue a luta pelos ideais
Abraços Ferriani