Clique no play para ouvir esta história:
História narrada pela jornalista Daniela Penha.
– Era uma vidinha bem pacata. Parecia que minha vida estava definida ali.
O guarda-roupas se transformava em lousa improvisada. Paula, ainda menina, fingia que estava diante da sala de aula, explicando as letras, e criava metáforas linguísticas: dizia que o “S” parecia uma baleia, para que os “alunos” aprendessem a grafia.
– Não era nada pedagógico, mas era o jeito que eu explicava.
Devorava histórias em quadrinhos e também uma enciclopédia sobre as civilizações que a mãe comprara. Lia para a avó, que não sabia ler, e simulava “aulas” de reforço de matemática para o irmão, que não ia bem na matéria.
Demorou um pouco para que os alunos e a lousa fossem de verdade. Para que a vida “pacata”, na cidade de Guaxupé (MG) se transformasse em 70 aulas por semana, enfrentando uma cidade grande onde não conhecia ninguém além dos filhos e do marido.
Sem saber bem o que queria – dentro da normalidade dos 17 anos – ela tentou o curso de contabilidade, mas não gostou. Se casou aos 18 anos e veio a vontade de ser mãe. Aos 20, engravidou do primeiro filho e, quando ele estava com três anos, veio o segundo.
A rotina, então, foi tomada pela maternidade.
– Eu não me permitia deixá-los com ninguém.
Algo dentro de si continuava pulsando, entretanto. Com seus pequenos, a leitura era diária, como conta, cheia de nostalgia:
– Meu marido trabalhava como viajante e eu ficava sozinha com eles. A gente ia para o meu quarto e ficávamos na cama: cada um de um lado e eu no meio. Cada um tinha ali seu momento de leitura e também pintávamos, recortávamos letrinhas…
O mais novinho ainda não sabia as letras, mas contava as histórias a partir das imagens e do que ouvia na leitura do irmão.
– Hoje eu reconheço que ele estava sendo letrado ali.
Em 1996, quando os filhos já tinham quatro e sete anos, Paula Rezende Hautz Dias decidiu voltar para o mercado de trabalho. Estava com 26 anos e as contas da casa apertadas: o motivo inicial.
Primeiro, foi supervisora de censo no IBGE, em uma vaga era temporária. Dois anos depois, entrou para a secretaria de saúde de Guaxupé e decidiu retomar um curso de inglês.
O interesse pelos idiomas também surgiu na infância. Sua série preferida era em inglês e contava a rotina de uma professora com sua sala de alunos crianças: presságio ou inspiração?
Na metade do curso, Paula começou a dar aulas e decidiu se matricular em Letras, por volta de 1998. Entrava às 7h na prefeitura, saía às 17h15, ia para o curso de inglês como aluna e depois para a faculdade. Aos sábados, trocava de papel e dava aulas no curso.
Começou a pegar mais aulas, pediu licença da Saúde e foi se constituindo professora.
– Entrei de cabeça nisso! Lá em Guaxupé dei aulas para todo mundo: escola particular, escola de idiomas, sobrinhos, irmão, meus filhos. E todos eles tinham que ser exemplo em sala de aula. Sou muito rígida. Cobro muito!
Trocou a lousa improvisada pela de verdade e percebeu, com quase 30 anos, que a vontade de ensinar já morava ali bem antes.
– Uma veia de educação havia ficado para trás. Eu tinha tias, primas professoras. E sempre tive mania de corrigir as pessoas, sabe? No almoço de família?
Em sala de aula não ensinava o “S” como forma de baleia, mas procurava sempre levar o diferente. Lia histórias, com dramatização e voz de suspense, quando o tema era terror. Improvisava, se fosse preciso.
– Todo professor tem que ter o plano de aula e várias cartas na manga porque a escola é muito viva, dinâmica. Eu planejo alguma coisa, mas pode acontecer algum evento e é preciso ter uma carta para que o aluno não perca.
Na infância, duas professoras lhe marcaram. Uma positivamente e outra não. Foi trocada de sala porque a professora achou – sem lhe perguntar – que ela não sabia ler a cartilha “Olá, amiguinhos”. Passou, então, a integrar uma sala considerada “mais fraca”.
A nova professora lhe acolheu com todo carinho e lhe perguntou: “Afinal, você não sabe ler a cartilha?”. Paula sabia e se tornou, então, a melhor aluna daquela sala. Se encantou com a nova professora. Houve troca. E hoje há inspiração.
– Como professora, eu tentava prestar a atenção em cada sujeito, cada aluno.
Para ela, ensinar é estar em movimento:
– Não existe uma receita pronta para ser um professor que consiga realizar seus objetivos. A cada dia a gente se ressignifica. Cada prática mostra maneiras de mudar o que não está certo.
Entre as histórias que mais marcaram, algumas positivas, como a do aluno que tinha dificuldade de aprender, deixou a escola no sexto ano, mas depois pôde reencontrar na EJA (Ensino de Jovens e Adultos). Há também aquele que era agressivo com todos, mas gostava da professora Paula. Tem também as histórias tristes: perdeu uma aluna de 10 anos, com câncer.
– Hoje eu vejo o quanto nós nos transformamos. Vejo coisas que faria diferente. Você tem o aluno que vai muito bem, mas é deixado de lado enquanto você tenta socorrer outros que necessitam mais e, às vezes, ele para ali, sendo que seu potencial era maior. E outros que a dificuldade era tanta que você desiste. Às vezes eu desisti de alguns alunos.
Em 2005, a rotina, que já era um tanto movimentada, passou por outra mudança. O marido recebeu uma proposta de trabalho em Ribeirão Preto. Paula largou seus empregos. Os filhos – 11 e 14 anos – deixaram os amigos e a escola. Se mudaram para a cidade sem conhecer ninguém.
– Na época, eu não queria sair de lá. Mas ele podia perder o emprego.
Chegou e já foi se reestruturando. Prestou concursos e novos caminhos foram traçados como professora do Estado e de escolas particulares. Em 2012, ela iniciou um curso de Pedagogia semipresencial.
– A minha vida é um turbilhão. Eu faço muitas coisas ao mesmo tempo. Nessa época da faculdade, com 70 aulas por semana, eu ficava com a máquina de lavar ligada, lendo no computador e amassando pão.
Em 2016, prestou um concurso para vaga de coordenadora na Prefeitura de Ribeirão Preto. Passou, mas precisava do diploma em Pedagogia para assumir e ainda faltavam quatro meses para se formar. Tentou de todas as maneiras que a faculdade antecipasse sua formatura. Depois de muita insistência, conseguiu.
– Eu acho que os ‘nãos’ já estão postos. Então, eu luto pelo ‘sim’ naquilo que eu acredito.
Desde 2017, quando assumiu, é coordenadora pedagógica na Secretaria de Educação de Ribeirão Preto.
Hoje, faz o acompanhamento dos cursos de formação de professores e das escolas, como um elo entre a secretaria e os coordenadores.
– O professor que se forma continuamente consegue ter os horizontes abertos. O professor que pesquisa, estuda e busca vai conseguir voltar isso para o aluno e instigá-lo a ser estudioso.
Não está mais na sala de aula, mas do outro lado. E leva sua experiência para colaborar com uma melhor gestão.
– Ao mesmo tempo em que tenho saudade, a condição hoje é estar em outra ponta para resolver outros problemas. O fato de estar aqui me permite andar pelas escolas e fazer algo para ajudá-las.
Acredita na educação feita no coletivo.
– A educação traz equidade, mas a promoção da equidade não depende de sujeitos isolados. Cada professor pode tentar promover a equidade a partir do chão da sala, mas depende de políticas públicas para que isso aconteça.
Pelos anos que passou em sala de aula, entende as frustações dos professores, que também são as suas. O docente, ela diz, “tem seus momentos de sofrimento” por pensar que a solução das questões depende só de si.
– Às vezes eu me frustrava e me sinto ainda culpada por alguns alunos que não consegui transformar de alguma maneira. O professor é muito sozinho na caminhada.
Como integrante da secretaria procura, então, auxiliar no caminho de alguma forma. Ciente de que as mudanças exigem tempo.
– Não é da noite para o dia. Leva anos. Você planta uma semente aqui, mas, às vezes, não é você que vai colher. Mas se vai cuidando, passando para frente, vai germinar em um bom fruto.
A vontade de mais ainda não amenizou.
– Minha mãe me pergunta: ‘Paula, quando você vai sossegar?’.
Não tem a resposta. O próximo plano, aos 49 anos, é cursar o mestrado. Depois, quem sabe, conhecer o mundo.
Os filhos – hoje com 25 e 28 anos – continuam seus companheiros, parte fundante de sua trajetória. O mais velho se tornou professor de inglês, para a alegria da mãe que vive com o parceiro de profissão uma troca de aprendizados. O mais novo é piloto de avião, inspirado pelo pai, que também seguiu a profissão.
– O que me faz dar sentido para a vida é poder pensar que eu pelo menos tentei fazer alguma coisa que vai significar algo para alguém.
Educar, ela diz, não é fácil. Mas é possível.
– Porque se a gente não acredita que é possível, então não somos educadores, não é?
Segue, então, escrevendo sua história na educação.
*Quer traduzir essa história em libras? Acesse o site VLibras, que faz esse serviço gratuitamente: https://vlibras.gov.br/
Assine História do Dia por R$ 13 ao mês ou faça uma doação de qualquer valor AQUI.
Nos ajude a continuar contando histórias!
Parabéns a Daniela Penha pelo excelente trabalho que faz!! Ela consegue transformar falas simples em histórias encantadoras! É um trabalho de extrema relevância, pois o registro legítima as marcas que o ser humano deixa na história!!