Por Daniela Penha
A avó foi ama de leite, nos resquícios da escravidão.
A mãe era dona de casa. Dizia que nasceu para sofrer do tanto que apanhava do pai, mas não deixou de buscar ser feliz. Nunca pôde estudar, mas jurou que estudava os filhos e cumpriu, trabalhando como empregada doméstica, lavadeira, funcionária de serviços gerais.
O pai foi combatente da 2ª guerra e, por toda a vida, carregou traumas. Sequer podia ouvir barulho de avião sem entrar em desespero.
Tiveram três filhos, entre eles Regina Brito, que cresceu aprendendo a lutar.
Hoje, aos 65 anos, quando fala da sua trajetória, ela não esconde os tombos – que não foram poucos. Mulher, negra, lutando para ter o seu lugar. Foca, porém, na conquista. E usa as derrotas como marcas da luta.
Regina, na adolescência, foi barrada nos bailes de carnaval dos clubes de Ribeirão Preto. Os amigos brancos entravam e ela ficava de fora.
Decidiu, então, que faria seus próprios portões. Engajada nas causas sociais, levantou ONGs e participou na criação do Seavidas (Serviço de Atenção à Violência Doméstica e Agressão Sexual) do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, instituição da qual está à frente há 17 anos.
Hoje, também é presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Ribeirão Preto.
– A gente traz no DNA a luta das mulheres guerreiras do passado. Garantir uma representatividade não é fácil. Mas a vida não é fácil. A gente carrega muito peso, mas temos que fazer acontecer.
A faculdade de Serviço Social foi paga com o salário que ela ganhava trabalhando em uma livraria. Regina conta que, não raro, tinha que sair da sala por atraso nas mensalidades.
– No mês que não tinha dinheiro, a prova não subia. E havia todo o constrangimento de ter que sair da aula
Saía, mas no dia seguinte estava de volta. E assim foi até a formatura, em 1978.
De 1980 a 1986, trabalhou com medicina social, em um projeto de atendimento domiciliar. Entrou no Hospital das Clínicas em 1986, e não mais saiu.
Na década de 90, a AIDS fez um terremoto na rotina, pelos casos que não paravam de aparecer em Ribeirão e pelo seu irmão, que era homossexual, ser um dos infectados.
Regina conta que ajudou a reerguer o Gapa (Grupo de Apoio e Prevenção à Aids) e lutou para que os pacientes fossem acolhidos, em um cenário de falta de medicamentos e informações sobre a doença.
O irmão morreu em 1993. E Regina continuou sua luta.
Relembra que uma das conquistas do grupo foi conseguir, na Justiça, que os pacientes de Ribeirão tivessem acesso ao coquetel, medicação que controla os efeitos do vírus no organismo e que, até 1996, quando o Brasil liberou o acesso gratuito, custava valores exorbitantes.
Regina deixou o Gapa em 1997.
No dia-a-dia de Hospital das Clínicas, se angustiava, porém, com a falta de acolhimento aos pacientes homossexuais, transexuais, travestis, profissionais do sexo, vulneráveis a doenças sexualmente transmissíveis.
– Naquela época, Ribeirão tinha 32 chácaras de prostituição na região do Jardim Aeroporto.
Por volta de 1999, ajudou, então, a criar a ONG Vitória Régia, que teve sua primeira diretoria formada no ano de 2000.
– Foi a primeira ONG em Ribeirão Preto a trabalhar a prevenção das doenças sexualmente transmissíveis com profissionais de saúde, profissionais do sexo, transexuais, travestis.
Nessa mesma época, programas de saúde estaduais começaram a pesquisar infecções sexualmente transmissíveis em pessoas que sofriam violência sexual.
Regina foi convidada a participar e ajudar a criar o Geavidas (Grupo de Estudos e Atenção à Violência Sexual) que, em 2008, se tornou serviço especializado, referência na região.
Hoje, o Seavidas conta com equipe multidisciplinar para os atendimentos diários. As mulheres são a grande maioria.
– A luta é pela cidadania, pelos direitos de nós mulheres negras, brancas, índias, refugiadas. Todas nós!
Regina aponta, entretanto, que a maioria das mulheres que procuram o serviço são brancas.
– As mulheres negras são muito mais vulneráveis e não têm acesso aos serviços.
Em 2015, Regina recebeu o prêmio de Profissional do Ano de Excelência e Qualidade Brasil, da Associação Brasileira de Liderança.
Relembrou, então, os tantos olhares tortos que recebeu e ainda recebe.
– Nada é de graça para nós, mulheres negras. A luta é muito mais desigual. Quantas vezes já ouvi: “Quem ela está pensando que é? Ela tem mesmo que ocupar esse cargo? O coordenador não deveria ser um médico?”.
Ouve e continua no seu caminho.
– Tudo o que eu posso fazer, voltado à gênero e raça, eu faço. Os direitos não são iguais. É só olhar quem são as pessoas que ocupam cargos de referência no país hoje. A maioria são homens e brancos. Mulheres são poucas. Mulheres negras, quase nenhuma.
Regina afirma – e reafirma – que nunca teve medo de tentar, de buscar a mudança que é tão necessária.
– O “não” você já tem. Nunca deixei de buscar. No ganho do “sim” é possível implementar políticas públicas.
Como coordenadora do Seavidas, continua indo à campo. Diz que vai para as áreas onde há prostituição, aborda mulheres, travestis, transexuais para informar, acolher, levar prevenção.
– O meu maior orgulho é de ter conseguido estruturar e dar visibilidade a um serviço de referência para pessoas em situação de violência. Isso está escrito. Ninguém tira.
Sabe que, não tão distante, vai chegar a hora de aposentar. Passar o legado a outras mãos.
– Mas as atividades paralelas vão continuar. Não tenho esse perfil de ficar só no lar, recatada. Quero estar na rua, buscar conhecimentos e passar algo para os outros.
Conta que a filha, de 26 anos, está cursando Direito e faz estágio com uma juíza que, como Regina, participa da rede de proteção a mulher em Ribeirão.
– Realizada? Eu me sinto, viu? Acho que não passei por essa vida por passar. Deixei um legado. A luta tem que continuar.
O DNA das mulheres guerreiras do passado transforma gerações.
Não há mais barrados no baile de Carnaval. Mas há ainda muitos e muitos portões a serem abertos.
Que alegria, ler esta história que tão bem conheço e acompanho, ela é de uma mulher responsável, guerreira que conheci menina. A luta herdou da mãe assim como o sorriso que passou no DNA para a filha. muito me emociona porque é uma mulher negra que com muitas lutas vem consolando, ajudando, abrindo caminhos e porque não felicidade a todos que são assistidos por ela. De voz calma, suas palestras são impregnadas de esperança e seus projetos de realizações em prol de um mundo melhor para todos. Com orgulho ela nos representa a todas as mulheres negras e não negras de Ribeirão Preto, mas principalmente a todas que foram barradas na entrada dos salões de baile e a todas que passaram pelo constrangimento de sair da sala de aula no dia de prova, mas voltar e continuar o curso até a formatura, com determinação e vencer mais uma etapa.
Parabéns Regina, é pouco para voce mas é como posso cumprimentá-la hoje, sua mãe com certeza está a ti enviar aquele sorriso carinhoso.