Ricardo ajudou a separar siamesas unidas pelo crânio no Hospital das Clínicas de Ribeirão

14 fevereiro 2019 | Gente que cuida

O relógio marcava 21h09 quando os médicos tiveram certeza: as gêmeas, enfim, estavam separadas.

Nas mãos de Ricardo, duas cabecinhas, agora sem nenhum elo, pulsavam.

– Eu estava com uma criança e a outra. Separadas. Eram duas: uma aqui e outra ali. Foi muito emocionante.

Desde que o caso chegou ao Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, levou um ano e meio de preparo, conversas, exames, projetos até a realização das cirurgias. Quatro procedimentos, entre fevereiro e outubro de 2018.

O neurocirurgião pediátrico Ricardo diz que, em momento algum, duvidou da capacidade da equipe para realizar o procedimento.

– Eu não questionei, porque sabia que a gente tinha preparo para fazer a cirurgia. Mas esse preparo é fruto de treinamento. É reflexo de toda uma trajetória. Anos e anos de vivência.

Ele foi um dos médicos que participou da cirurgia de separação das irmãs Maria Ysabelle e Maria Ysadora, que nasceram unidas pelo crânio.

Foi a primeira vez que um procedimento do tipo foi realizado na América Latina. Ricardo Santos de Oliveira explica, ainda, que desde 1952, quando a Medicina registrou o primeiro caso de separação com êxito, apenas 70 casos assim foram registrados em todo mundo. Desses, somente 45 irmãos puderam ser operados e 25 tiveram cirurgias bem-sucedidas.

Mais do que o ineditismo, então, o médico celebra o bom resultado. No dia 7 de dezembro, o Brasil assistiu a alta das pequenas, que posaram para fotos separadas.

– A recuperação delas foi muito acima do esperado. Já estão fazendo fisioterapia, firmando a cabeça e ficam em pé com ajuda de apoio. A gente acredita que até o final do ano elas possam nos surpreender de novo, com os primeiros passos.

Siamesas unidas pelo crânio Hospital das Clínicas

Quando conta sua história, Ricardo faz pausas em momentos de decisão, que poderiam alterar todo o resultado das coisas.

Aos 14 anos, decidiu que queria ser neurocirurgião. Não queria ser médico, apenas. Queria especificamente trabalhar com cirurgias neurológicas. Depois, aprovado em três faculdade públicas, resolveu que iria estudar na USP de Ribeirão Preto.

No dia em que as gêmeas passaram pela primeira cirurgia de separação, a irmã do médico havia sofrido um infarto e estava internada em estado grave. Ricardo decidiu que iria manter os planos.

– Quando eu entrei na cirurgia, eu pensava na cirurgia. Minha meta era operar as crianças. Por mais difícil que seja, é preciso separar as coisas.

Equilíbrio que também vem dos anos de trajetória. Ele mostra a etiqueta com o nome do paciente no bolso da calça. Desde que começou a operar, guarda todos os registros dos pacientes que passaram pelas suas mãos. Operou mais de seis mil pessoas.

Muitas delas, como as gêmeas, tiveram a vida totalmente transformada. Motivo para sempre continuar.

– Eu tento ao máximo possível fazer meu melhor. E é esse melhor que faz a diferença. Ver a criança com uma dificuldade e depois ver como a vida dela mudou é gratificante. Fica para sempre.

Siamesas unidas pelo crânio Hospital das Clínicas

Ricardo nasceu e cresceu em São José do Rio Preto. Conta que a infância foi feita de muita brincadeira na rua, futebol, natação.

Aos 14 anos, decidiu sua profissão. Diz que não sabe explicar o motivo que o levou a uma decisão tão fundamentada, com tão pouca idade.

O pai era contabilista e a mãe dona de casa. Na família simples, Ricardo afirma que foi o primeiro a conquistar um diploma de ensino superior. Para entrar na faculdade, entretanto, a família apertou as contas. O colegial em escola particular foi pago com muito esforço. E o pai avisou: se Ricardo não passasse direto, não teria condições de pagar cursinho.

– Eu sabia que era um momento decisivo. Não teria uma segunda chance.

A mãe, preocupada, chegou a questionar se o filho não faria concurso para o banco.

– Ser bancário era algo bom para uma família de classe média baixa. Mas eu decidi que iria tocar em frente.

A ideia era passar na Unicamp. Fez todo o preparo para essa prova, pensando em se mudar para Campinas. Passou nas três: Unicamp, Usp e Unesp. Quando veio para Ribeirão Preto fazer a matrícula, se apaixonou.

– Eu voltei no ônibus com meu pai dizendo que iria ficar em Ribeirão. E nunca me arrependi de ter tomado essa decisão.

Ricardo entrou na faculdade de Medicina em 1989. Para se manter fora de casa, o mesmo esforço de antes. Morou com um tio, depois em república e logo conseguiu uma bolsa de pesquisa. Além do apoio financeiro, descobriu que pesquisar seria uma de suas metas como médico.

Se dedicou à área de imunologia, mas sem deixar a neurologia de lado. No quarto ano acompanhava as cirurgias, tamanha era a vontade de aprender.

– Eu terminei sem nenhuma dúvida do que queria.

Se formou em 1994, fez residência entre 1995 e 1999 e decidiu seguir pela pediatria. Em 2001 já estava defendendo seu doutorado e, de 2001 a 2002, morou e trabalhou na França, aprendendo em um hospital que é referência mundial.

– Eu nunca mais fui o mesmo. O que eu aprendi transformou minha carreira. Quando eu voltei, pude desenvolver áreas que vinham sem grandes perspectivas no hospital, como a cirurgia craniofacial, a neuro-oncologia, a neuroendoscopia, as más formações.

Entre 2009 e 2010, dando continuidade à trajetória, defendeu sua livre-docência.

– É por isso que a história das gêmeas poderia ou não acontecer, mas nós estávamos preparados. Foi um preparo de muitos anos.

A história das irmãs chegou ao Hospital das Clínicas por intermédio de outro médico, que foi para Fortaleza realizar uma cirurgia. Por volta do meio de 2016, o profissional voltou da viagem propondo trazer o caso para Ribeirão.

Com um trabalho de equipe, foi possível aceitar e cuidar das meninas. Até mesmo um médico dos EUA se uniu ao grupo brasileiro, nesse procedimento inédito.

Siamesas unidas pelo crânio Hospital das Clínicas

Ricardo começa a entrevista comentando o caso de uma criança que nasceu com uma má formação nos ossos do crânio. Mostra as fotos da menina antes e depois da cirurgia. E se orgulha:

– Esse caso é uma história! Olha só: ela é outra pessoa. A mãe disse que quando elas voltaram para a cidade delas, ninguém reconheceu.

O trabalho feito pelo neurocirurgião não só salva vidas, como transforma realidades.

É preciso tomar decisões, no entanto. E, na maioria das vezes, não há muito tempo para pensar. O médico já perdeu muito, por isso comemora cada vitória.

– Por mais que a gente conviva com a morte, com doenças de difícil tratamento, há também muita coisa boa. Tem uma frase que gosto muito: ‘Você perde, perde, perde. Mas quando você ganha, você é um rei!’.

Ricardo já teve medo de perder pacientes. E, inclusive, acredita que existe algo além do visível cuidando do que a gente, muitas vezes, não consegue compreender. Conta do menininho que chegou em estado gravíssimo após um acidente de carro.

– Poucas vezes eu achei que iria perder uma criança na mesa de cirurgia, mas conseguimos contornar. Ele ressurgiu, ressuscitou.

Com as gêmeas, também houve preocupação. Ele diz que a terceira cirurgia trouxe um dos momentos mais complicados. Uma das irmãs teve problemas no pós-operatório.

– Muita coisa passou na nossa mente. Se tivesse uma situação grave, a separação teria que ser feita de qualquer jeito. Nós iríamos perder uma delas ou cairíamos em uma situação que não seria ideal. Era uma possibilidade real, mas nós voltamos a nos equilibrar. E a turbulência passou.

Siamesas unidas pelo crânio Hospital das Clínicas

A última cirurgia foi realizada no dia 27 de outubro, com início às 12h30 e término às 3h30 e a conquista do melhor resultado possível. O maior desafio era separar as meninas sem comprometer nenhuma delas, do ponto de vista neurológico.

– A gente pôde mostrar que é possível fazer Medicina dentro do hospital público. Com esse procedimento, muitos profissionais puderam ter contanto com muitas tecnologias. Houve uma mudança de paradigma.

Aos 48 anos e currículo tão vasto, Ricardo não pensa em parar. Quer continuar somando nomes de pacientes à sua extensa lista.

– Me sinto realizado, sim. Porque sinto que cheguei a um patamar em que consigo fazer a diferença em algumas situações. E isso não acontece do nada. É uma trajetória.

Ricardo mostra um vídeo das irmãs Maria Ysabelle e Maria Ysadora no colo dos pais, de alta hospitalar. A família comemora a nova vida conquistada com muita garra. E o médico continua certo de que tem feito as melhores escolhas.

 

Fotos com as gêmeas: arquivo pessoal de Ricardo

 

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1 Comentário

  1. Audrey

    Ele também operou meu filho, sou muito grata por ele ser esse excelente profissional e nos devolveu a alegria da nossa vida!!

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