Rodrigo, o “Só Deus”, encontrou na avenida Nove de Julho oportunidade para recomeçar

12 fevereiro 2020 | Histórias do Proac 2019/2020

Texto e fotos: Alice de Carvalho Leal

 

– Só por Deus, tem que orar!

Se Rodrigo Simpliciano da Silva fosse uma empresa, esse poderia ser seu slogan. A expressão funciona como uma marca registrada do homem de 42 anos, que fez da avenida Nove de Julho, em Ribeirão Preto, sua segunda casa. É difícil, inclusive, encontrar quem o conheça pelo nome de registro.

– Só descobriram que eu sou Rodrigo quando deixei minha carteira cair aqui na avenida e vieram me devolver. Falaram: olha, o Só Deus tem nome!

O ponto onde Só Deus – ou Rodrigo, como preferir – escolheu para trabalhar há sete anos são dois quarteirões da avenida, localizados entre as ruas Barão do Amazonas e Comandante Marcondes Salgado.

Quem passa por ali de segunda-feira a sábado, durante quase todo o dia, encontra uma cadeira, um saco de materiais recicláveis e o sorriso amigável, que nem precisa mais se oferecer para dar uma olhadinha no carro. Até semanas atrás, uma caixa de som também o acompanhava, mas foi furtada.

Com o passar dos anos, a necessidade fez com que ele se tornasse mais do que um guardador de veículos.

– Quando comecei a olhar carros, ganhava menos de vinte reais por dia. Aí tive a ideia de lavar os carros no balde e usei as redes sociais. Escrevia lá: faço serviço de guardinha mirim, faço depósito, lavo toldo, corto mato… foi dando certo.

É na área central de Ribeirão Preto que ele ganha o mês e coloca comida na mesa. Mais do que o dinheiro, Só Deus também conquistou uma nova família: os comerciantes do entorno.

– Sou amigo de todo mundo nessa quadra. Eu entro naquela loja, entro naquela outra, entro na TV, uso o banheiro da rádio, me dão comida. Quando não venho, o pessoal me liga perguntando se aconteceu alguma coisa, acredita?

Se você está pensando que é exagero, pode mudar de ideia. Durante nossa conversa, inclusive, ele vestia o uniforme de uma das empresas do local e recebia um caloroso “bom dia” de todos que passavam.

– Eu ganhei essa blusa aqui e tenho mais um monte em casa. O pessoal sempre me ajuda, sabe? Avisei que ia começar a recolher latinhas de alumínio e agora um monte de gente está juntando em casa e trazendo.

No mês passado, durante a noite, um homem até tentou tomar o lugar dele à força. Chegou com um cabo de vassoura e bateu nele diversas vezes. A confusão só terminou com a chegada da Polícia, que tirou o homem do local. Só Deus ficou com um corte na testa, o pulso direito aberto e o colete de trabalho rasgado pelo agressor.

– Sorte dele que era noite, porque, se fosse durante o dia, o povo não ia deixar ele vir me bater, não. Amiguinha, o que eu passo aqui nessa Nove de Julho: só por Deus, viu? Minha vida não é fácil, não. Nunca foi.

O que levou Rodrigo a transformar a avenida em local de trabalho e virar o tão conhecido Só Deus? Pouca gente sabe!

Rodrigo avenida Nove de Julho Ribeirão Preto

Quando era pequeno, ele vivia em uma casa no Ipiranga, zona Norte da cidade, com os pais e nove irmãos. Aos oito anos, um episódio traumático fez com que a vida de Rodrigo virasse de cabeça para baixo. O pai havia acabado de chegar em casa.

– Ele disse que ia tomar um banho, assistir ao jogo do Brasil que ia passar na televisão e comer uma bacia de alface. Lembro que estava passando aquela novela Roda de Fogo.

Foi quando a campainha tocou. A mãe pediu que o menino fosse atender, mas o pai tomou a frente. E, então, tiros.

Um.

Dois.

Três.

Quatro.

Certeiros.

– Era meu tio com um revólver 38 na mão. Matou meu pai porque descobriu que ele estava saindo com minha tia, mulher dele e irmã da minha mãe.

A partir daí, a família precisou se separar. Quando começaram a passar fome, a mãe percebeu que não tinha condições de cuidar de dez crianças sozinha. A melhor saída que encontrou foi separar os filhos – seis homens e quatro mulheres – e abrigá-los em orfanatos. Em alguns finais de semana, passava para visitar as crianças, mas nunca os levava para casa como as outras mães faziam.

Eu pergunto:

– Você sentia falta dela?

Entre um suspiro profundo, lágrimas nos olhos e voz embargada, ele responde:

– E quem não sente falta de mãe? Só por Deus…

Durante os dez anos em que ficou no orfanato, não viu nenhum de seus irmãos serem adotados por outra família. Nem ele.

– Mas também, lógico, era preto! O povo não gosta de gente preta, de neguinho assim que nem eu. Já acostumei.

Ao completar 18 anos, teve que deixar o abrigo. A rua pareceu ser a única saída e até funcionou durante dois anos. Dormia em casas abandonadas ou em casas dormitórios, que abrigam pessoas em situação de rua. Pedia comida em bares e restaurantes e precisava seguir em frente mesmo quando negavam um copo d’água. Tomava banho na fonte da Praça XV de Novembro. Passou pelos anos mais difíceis da vida.

– Era só Deus e eu. É tanta coisa que a gente vê na rua, tanta humilhação que a gente passa… o povo desvaloriza muito quem é preto, gosta de humilhar, sabe? Tentaram me levar para o caminho das drogas, mas eu não queria de jeito nenhum.

Durante esse período, não deixou de visitar as irmãs que ainda estavam no orfanato. Uma das responsáveis pelo abrigo, sabendo da situação em que estava, arrumou seu primeiro serviço, na Casa das Mangueiras.

Por meio de um projeto chamado Pedagogia de Rua, ele realizou uma série de atividades voltadas ao município. Começou com os recicláveis, depois foi cuidar de plantas no Horto e ajudar no Pau D’alho. Aos poucos, foi perdendo contato com os irmãos.

– Um deles virou bandido e morreu durante uma troca de tiros com a polícia. Os outros converso um pouco por mensagem no celular, e só.

Rodrigo casou, teve uma filha, se separou e hoje tem uma neta de três anos.

– Assusta, né? Pegar a responsabilidade de criar um filho, depois ainda vem neta… não é fácil.

Conseguiu o primeiro registro na carteira de trabalho em um hospital particular da cidade, onde trabalhou por seis anos como operador de máquina de lavar roupas. Depois, passou a pintar sinalização de solo pelas ruas da cidade. Entrou também em uma empresa de limpeza terceirizada. O último registro foi no emprego pelo qual se apaixonou: coletor de lixo.

– Eu recolhia lixo durante a noite, de segunda a sábado. Adorava! Achei tanta coisa no lixo, videogame, televisão, celular…

A brincadeira com os novatos era “rachar” o coletor, ou seja, fazer o caminhão correr para que ele tivesse que correr atrás.

– Quando fui tentar pegar no ferro de apoio do caminhão, escorreguei e bati a perna. Machucou muito, mas não fui pro hospital porque precisava do serviço. Se eu operasse, quem ia dar de comer para minha família?

Trabalhou por mais quatro anos com a perna ruim, até o dia em que não aguentou mais. Rodrigo precisou se afastar daquilo que mais amava e ficou impossibilitado de voltar a correr. A situação começou a apertar novamente.

– Ganhava tão bem no serviço, tinha vale alimentação, agora o dinheiro não dá pra nada…

Rodrigo avenida Nove de Julho Ribeirão Preto

Formado apenas até a oitava série, enfrenta até hoje dificuldades para retornar ao mercado de trabalho formal. Por isso, a avenida Nove de Julho foi a melhor opção encontrada. Se engana quem pensa que ele está satisfeito com a vida que leva.

– Eu quero trabalhar de volta, preciso! Tenho planos de casar, dar uma vida boa para minha namorada, ter uma casa, um carro. Quero ser feliz, sabe?

Rodrigo confessa que não consegue manter o sorriso no rosto quando retorna para a casa onde vive, na Vila Virgínia.

– Aqui eu sou uma pessoa, brinco, sorrio, em casa sou outra. Acho que a noite não deveria existir. Escuro, tudo vazio, muita solidão…

As palavras são interrompidas pelo choro.

– Às vezes, dá uma loucura de querer cortar os pulsos. Eu já tentei, sabe? Enfiei a faca, mas começou a sair muito sangue. Assustei e acabei tirando.

Com toda a dificuldade, ele ainda busca uma maneira de se apegar à esperança de que dias melhores estão por vir.

– Eu quero ser valorizado. Já era para estar morto há muito tempo, pelas coisas que passei e ainda passo. Tem que orar muito! Tem que ter força de vontade. E eu tenho.

Só por Deus?

 

*Quer traduzir essa história em libras? Acesse o site VLibras, que faz esse serviço gratuitamente: https://vlibras.gov.br/

 

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4 Comentários

  1. Elizângela

    Eu o conheço tbm, tens uns 10 anos, e o conheço aqui da avenida. Tomara que consiga realizar todos os seus sonhos!!! Ele é uma pessoa incrível. Que Deus continue a guarda-lo.

    • Sirlene

      Ele é uma pessoa extrovertida, ele e admirável que Deus abençoe e o proteja sempre. Só por Deus ele e 10

  2. Flávio Souza

    Gente ajuda ele arruma um trabalho de carteira registrada aí na Av 9 de julho agora todos conhece a estória dele

  3. Eliana Palaveri

    Rodrigo é exemplo pra muita gente!!;nunca deixa ou deixou a peteca cair sempre com um sorriso no rosto
    Só Deus !!;gratidão por ter conhecido e vivido um pouco da sua história

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