Sílvia foi aluna do Otoniel Mota e hoje ajuda a resgatar memória da escola

24 maio 2021 | Destaque, Patrimônio em Memórias

  

Esta história faz parte do projeto “Patrimônio em Memórias” realizado com apoio do Proac LAB, programa da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo.        

Texto e fotos: Daniela Penha

Ilustração de Luciano Filho, exclusivamente para o projeto “Patrimônio em Memórias”

Foi ali, na sala espaçosa com quatro janelas de vidro, que Sílvia Junqueira viveu parte de sua trajetória como aluna da Escola Estadual Otoniel Mota. A escrivaninha onde os professores se sentavam ainda é a mesma, mas antes havia um pequeno palco, para que os mestres se posicionassem acima, atentos a cada movimento da turma.

Hoje, a mesma sala abriga o Centro de Documentação e Memória (CDMOM) da escola. Sílvia foi uma das criadoras do movimento, que, com muito esforço, busca guardar a história de uma das instituições mais tradicionais de Ribeirão Preto, na mesma sala onde tanto aprendeu no passado. Uma dessas coincidências que a vida traz. Ou artimanha, quem sabe. Ali, as memórias dela ecoam sem rodeios.

– Agora, essa escola já se tornou minha casa de novo. Tenho o maior orgulho desse colégio. Aqui estão muitas histórias!

A ideia surgiu oito anos atrás. Ela recém voltara para Ribeirão Preto, depois de 34 anos vivendo no Rio de Janeiro, e quis rever os amigos de escola. Montaram um grupo no Facebook e, bem rápido, somaram mais de 700 participantes. Que tal uma reunião presencial?

Fizeram a primeira com poucos adeptos, a segunda teve um pouco mais e a terceira foi enorme! Puderam rever amigos, funcionários, professores. E, entre tantas conversas, uma funcionária, que era voluntária na portaria, revelou um tesouro.

– Ela disse que havia um acervo de documentos em um porão, estragando com o tempo, a chuva, cheio de gatos. Era um patrimônio!

Sílvia, de imediato, se prontificou a checar pessoalmente. Recrutou alguns parceiros e foram investigar.

– Com a euforia do momento, muitos participaram. Depois, foram saindo. Mas eu estou aqui até hoje. Tenho que passar o chapéu, mas para alguém que vá continuar. Não posso deixar tudo isso se perder…

Encontraram no porão da escola, entre muita sujeita e umidade, um acervo de registros, memórias, livros: história de décadas documentada. Desde então, buscam guardar esse patrimônio da melhor forma possível.

– É um acervo, uma história não só minha, mas de gerações. Foi uma forma muito gostosa de reencontrar a vida.

Laço feito de afeto

Talvez, Sílvia tivesse deixado a euforia inicial se perder, como fizeram outros integrantes do primeiro grupo. Talvez, nem tivesse se interessado pela história de uma papelada imensa, coberta de pó, em um porão escuro.

– Muitas pessoas, quando solicitadas a participar, a ajudar de alguma forma, dizem: ‘Não vou porque não tenho a menor ligação afetiva’. Eu acho que está aí. Minha ligação ficou adormecida quando fui embora, mas quando voltei, tudo foi puxando o novelo da memória e acontecendo.

O afeto aperta o laço entre as memórias e o presente e, então, se faz necessário guardar o passado.

Sílvia nasceu e cresceu em Ribeirão Preto e morou quase “a vida toda”, como diz, na rua Afonso Celso, bairro Sumaré. Entrou na escola Otoniel Mota em 1968, aos 12 anos, e ficou até os 16, seguindo a tradição familiar. Seus avós foram alunos do “Estadão”, como a instituição era chamada, depois os seus pais: três gerações de alunos.

Em 1968, a entrada era às 12h20 – em ponto – e a saída às 17h “e pouco”. O uniforme tinha que estar diariamente impecável. Na sala do CDMON, a camisa que usava para estudar está emoldurada e conservada. Era acompanhada de saia cinza, meia ¾ e sapato preto. Para as aulas de Educação Física usavam – obrigatoriamente – short bufante vermelho e camiseta branca “horrível”, em suas palavras, “mas tinha que ir”.

Escola Estadual Otoniel Mota Ribeirão Preto

Nas memórias dela a rigidez da época não era incômoda.

– O estudo era bem puxado, mas a gente não sentia pela maneira como se dava. O respeito era natural, não sofrido. O professor entrava e a gente se levantava da cadeira. Tínhamos isso, de reverenciar o professor. Se o diretor entrasse na sala, a gente ficava em pé até que ele saísse ou dissesse que podíamos nos sentar. A gente sentia medo das matérias, mas não das pessoas.

Em suas recordações, a escola era um espaço plural.

– O colégio tinha uma qualidade muito grande e todo mundo estudava, todo mundo era igual.

A molecada dava um jeito de driblar os olhares atentos das inspetoras.

– A gente ia com short por baixo da saia, carimbava a carteirinha de entrada, pulava o muro e ia no cinema. Quando dava a hora, pulava de volta para pegar a carteirinha.

Durou um bom tempo, mas um dia a inspetora descobriu e foi logo ligando para os pais.

– Eu tinha 22 faltas. Fiquei um mês de castigo!

Escola Estadual Otoniel Mota Ribeirão Preto

Espaço de vanguarda

Otoniel Mota foi uma escola de vanguarda política, com os grêmios e a efervescência cultural de seus alunos. Pessoas que estudaram lá se lembram dos debates. O advogado Feres Sabino, aluno da década de 50 relembra o parlamento criado pelos estudantes, como semente na formação do senso crítico político. Em 1958, ele foi presidente do Centro Nacionalista Olavo Bilac, fundado na escola entre 1934 e 1935 por um grupo descontente com o grêmio existente.

– Nós fizemos campanha e distribuímos a frase: ‘Eleitor, exija de seus candidatos dupla declaração: de bens e de princípios’.

Sílvia, que fez parte da escola em anos de plena ditadura militar, explica que, pela pouca idade e postura familiar, não tem lembranças sobre essa fatia da história do colégio. Seus pais eram fazendeiros e, quando não estavam na escola, os filhos estavam na fazenda.

– Eles nos protegeram e nos afastaram. Eu só fui tomar consciência já casada. Eu me lembro do grêmio lotado, mas eu não participava.

Relembra as aulas pluricurriculares disponíveis na grade, como culinária e costura.

– A gente se divertia com a bagunça que os meninos faziam na cozinha…

Os professores que mais marcaram, a movimentação dos corredores, as gostosuras da cantina: está tudo na memória, costurado com muito afeto.

–  O colégio era grande parte da vida da gente. Foi um período muito feliz da minha vida.

Depois que se casou, Sílvia foi morar no Rio de Janeiro, em 1977. As lembranças dessa época ficaram adormecidas pela rotina. Por lá, se dedicou à cerâmica, criou os dois filhos e construiu uma “ponte aérea” com Ribeirão, que terminou em 2011, quando decidiu voltar para cuidar do pai, que estava com problemas de saúde.

– Foi nesse momento que comecei a resgatar minha vida aqui.

Escola Estadual Otoniel Mota Ribeirão Preto

Cuidando da história

O reencontro com os amigos da escola foi um dos afetos que preencheram o tempo e a nova rotina. Ela vai ao Otoniel Mota uma vez por semana, para cuidar do acervo.

O primeiro passo foi retirar todo o material de dentro do porão. Contaram com o apoio de alunos e o treinamento de especialistas para aprenderem a forma correta de manusear e cuidar do patrimônio.

Depois de “salvo”, o acervo precisou ser higienizado, catalogado: um processo que segue ainda hoje.

Atualmente, o grupo é formado por nove pessoas, entre elas duas museólogas. Tudo é feito de maneira voluntária, o que torna todo o processo mais lento. Além disso, precisam driblar as dificuldades estruturais. Durante a pandemia, por exemplo, a sala onde estava o acervo sofreu uma infiltração com as chuvas. Tiveram que correr para não deixar o material ser comprometido.

– É um trabalho de formiguinha: três passos para frente, dois para trás.

Entre o material resgatado, estão atas dos vestibulares, fichas dos alunos, diários de sala, documentos administrativos, notas, álbuns, livros didáticos.

– É um material muito rico historicamente.

O projeto é transformar o acervo em um centro de pesquisas aberto ao público. Levar a memória ao alcance de sua gente, abrir as portas da história. Há dois anos, regulamentaram a Associação dos Amigos do CDMON, já pensando nesse passo maior.

Vão indo, passo a passo, sem deixar o trabalho parar.

– A nossa história é nossa origem, nossos hábitos, costumes, descendência… toda a nossa raiz.

Não há motivo mais forte. 

Escola Estadual Otoniel Mota Ribeirão Preto

História do patrimônio:

Inaugurado em 1907, o Gynásio do Estado foi a primeira instituição de ensino secundário do interior e a terceiro do Estado de São Paulo, depois de Campinas e São Paulo. Carrega também o título de escola mais antiga de Ribeirão Preto. Foi palco e espaço impulsionador de debates, sempre constituídos por efervescência política, fomentada por seus grêmios e centros estudantis. Instituição de vanguarda, inovou ao aceitar meninas logo na primeira turma, em tempos de espaços escolares divididos. Em 1945, o Gynásio se tornou Escola Normal Oficial de Ribeirão Preto. Em 1951, professores e ex-alunos encaminharam solicitação à Assembleia Legislativa para que a instituição passasse a se chamar Otoniel Mota, em homenagem ao filólogo e professor paulista. Em 1986, teve início o processo de tombamento do prédio pelo Condephaat, conselho de preservação do Governo de São Paulo. O tombamento foi deliberado em 2002 e a resolução de tombamento publicada em 2010.

Em março de 2017, a Escola Estadual Otoniel Mota completou 110 anos de existência. Para comemorar a data, a Fundação do Livro e Leitura lançou “Memórias de uma Escola: 110 anos do Otoniel Mota”. Para baixar o livro, e conhecer ainda mais sobre a escola, é só clicar AQUI.

Mais informações sobre o tombamento: http://condephaat.sp.gov.br/benstombados/e-e-otoniel-mota/

Mais histórias de afeto com a Escola Estadual Otoniel Mota:

Compartilhe esta história

3 Comentários

  1. Bia Paiva Ludwig

    Adorei este artigo! Comecei a 1a série no Otoniel Mota também em 1968. Quantas lembranças boas eu tenho da escola e desse tempo!

  2. Gonçalina

    Estudei nesta escola no período de 1975/76/77, cursando o colegial. Amava a biblioteca. Bons tempos.?

  3. Fernando Vugman

    Estudei no Otoniel Mota entre 1970 e 1976. Muitas e ótimas lembranças.

Outras histórias