Esta história faz parte do projeto “Força Italiana”, iniciativa da Casa da Memória Italiana, produzido em parceria com o História do Dia. Para conhecer mais acesse www.casadamemoriaitaliana.com.br!
O sorvete da família Pisani surgiu por um sonho – literalmente.
Bernardino decidira fazer sorvete. A notícia foi recebida com espanto pela esposa. Trabalhando sempre na lavoura, nunca na vida ele fizera algo do tipo.
Mas Bernardino não costumava mudar de ideia. Comprou alguns livrinhos, tentou, tentou e nada. Se sentava no chão da casa simples onde a família vivia, em Ribeirão Preto, e teimava para transformar líquido em buon gelato.
Uma manhã, acordou contente. “Lisa, hoje eu vou fazer sorvete! Eu sonhei como tenho que fazer!”. Comprou uma balancinha, foi medindo os ingredientes e começou, em 1921, a fabricar o sorvete que ficou famoso por toda Ribeirão Preto.
– Nunca conseguimos fazer o sorvete de leite igual ao meu pai. Ele era mestre! Era coisa de outro planeta. Tanto que o outro planeta é que ensinou meu pai a fazer sorvete!
Essa é a história que Orlando Pisani, filho do italiano, passou a infância a ouvir e a vida toda a replicar.
– Meu pai não mentia, era um homem muito sério. Foi assim! Você acredita?
Toda a produção era feita manualmente. A refrigeração era com gelo e sal.
– Batia com a mão até virar sorvete.
Bernardino Pisani saía com um carrinho simples vendendo sorvetes pelas ruas da cidade, junto com seu irmão, Carmo. Eles colocavam os baldes de sorvete de massa dentro do carrinho e vendiam por colherada. Foi assim por quase vinte anos, até conseguirem juntar renda para abrirem uma sorveteria na rua Saldanha Marinho, Centro de Ribeirão, na década de 40.
Com sorvete, Bernardino criou Orlando e seus outros seis filhos. O ofício que nasceu pela insistência já está na terceira geração da família de descendência italiana.
Orlando se formou professor, mas passou a vida toda fabricando e vendendo sorvetes, após um convite do irmão mais velho, Antônio Pisani. Como o pai, inventava suas receitas, inovava para cativar a clientela.
Empreendedor por natureza, ampliou os negócios. Além da sorveteria que manteve no Centro de Ribeirão Preto e depois nos Campos Elíseos por 45 anos, abriu também uma padaria ao lado, que continua em funcionamento até hoje, sob direção de outros donos.
O filho de Orlando, Renato Pisani, fez faculdade de Engenharia Química na Escola Politécnica da USP, em São Paulo. Quando estava terminando o curso, anunciou para a família que não continuaria trabalhando em grandes empresas – onde fazia estágios e tinha possibilidade de inserção na área.
Decidiu que iria trabalhar com os pais na administração da padaria e da sorveteria. Cursou também química, na USP de Ribeirão Preto, e usa todo esse conhecimento nas receitas e administração dos negócios, transformados com o tempo.
Hoje, a sorveteria que começou com a venda de sorvetes na rua é indústria. A padaria se desdobrou em fábrica de pães. Renato é quem administra os legados, que levam o nome da família. Mais do que os almoços de domingo, feitos com macarronada e polenta, herdou a força da família italiana.
O pai, Orlando, enfrenta as dificuldades de locomoção que vieram de seus 84 anos e quase todos os dias vai à fábrica para ver como andam as coisas. Na maior parte das vezes, não consegue entrar, barrado pelas escadas, mas fica sentadinho no carro, observando o resultado de uma história centenária.
– Onde eu trabalhei tive sucesso. Tudo o que eu fiz na minha vida foi pelo trabalho. O mestre foi meu pai. Foi insistência dele. Acho que era o sangue de família.
Partindo da Itália
Em busca de trabalho, a família Pisani deixou a Itália, cidade de Benevento, região de Campania, por volta de 1900. Na foto de despedida, o mesmo semblante fechado para quem ficaria e quem estava a partir.
Bernardino era criança, assim como a irmãzinha que veio com o pai e a mãe. Ele tinha oito anos. Ela faleceu logo quando a família chegou para as lavouras de café. Por aqui, seus pais tiveram mais um casal de filhos.
Orlando não sabe ao certo quando os pais deixaram a fazenda e partiram para a cidade. Quando nasceu, em 1935, a família vivia na área urbana e seu pai já vendia os sorvetes desde 1921, conforme a história que lhe contaram quando pequeno.
Nas lembranças da infância, os dias de chuva têm mais destaque. Bernardino produzia manualmente e não tinha freezer para guardar os sorvetes. Quando chovia, voltava para casa com o carrinho cheio, para a alegria dos filhos, que podiam tomar quanto quisessem, evitando o estrago. No início, o sabor de leite era único no carrinho. Depois, veio o de limão e outros.
Por volta de 1942, os irmãos Bernardino e Carmo, já conhecidos pelas vendas com os carrinhos nas ruas da cidade, abriram a primeira sorveteria da família, na rua Saldanha Marinho, número 98.
A família de Bernardino vivia no mesmo prédio do negócio, que fazia fundo com a rua Visconde do Rio Branco, numeral 239. Orlando cresceu, então, dentro da sorveteria.
– Três coisas eram importantes em Ribeirão nessa época: o chopp do Pinguim, o salgado do Carioca e o sorvete do Bernardino.
São as palavras orgulhosas do filho.
Sorvete ou futebol?
Orlando e os irmãos puderam estudar, com o sustento que vinha do sorvete. Ele diz que chegou a atuar como professor, por poucos meses apenas. Sua grande paixão não estava na sala de aula e nem dentro da sorveteria.
– Minha frustração foi não ter continuado com o futebol.
Começou a jogar na infância. O dia em que se consagrou como jogador pulsa forte na memória. Jogava pelo time da escola, durante um campeonato municipal. A partida, realizada no espaço onde hoje é a Cava do Bosque, foi para os pênaltis.
Explica que, na época, por volta de 1950, aos 14 anos, um único jogador era escolhido para tentar os gols. Ele e outro forte candidato disputaram, então.
– Eu fiz 18 gols e ele 17! Pensa: 18 gols!
Passou a jogar para times de bairros e no final da década de 50 conta que estava fazendo testes para o Comercial, quando veio a decisão.
Seu irmão, Antônio Pisani, filho mais velho de Bernardino, o convidou para montarem uma sorveteria.
– O sorvete não foi muito paixão. Foi uma ocasião.
O irmão deu o ultimato: o jogo ou os negócios. A responsabilidade falou mais alto. Em 1961, abriram a sorveteria Bernardino, na rua Amador Bueno, 373, em homenagem ao pai, e trabalharam juntos por 10 anos.
Em 1964, Orlando se casou com Lucilla Schiavotello, também descente de italianos, a mulher e companheira de negócios, que sempre esteve ao lado no trabalho.
Passou alguns anos fora dos campos de futebol, mas não tantos. Não conseguiu ficar longe de sua paixão. Passou a jogar de maneira amadora, uma vez por semana. Diz que ficou conhecido na rotatória da Amin Calil, onde jogou por mais de dez anos. Ali, era chamado de “Batalha”. Na sorveteria, a seriedade era retomada. Voltava a ser o “seu Orlando”.
Só parou quando a idade falou mais alto, já depois dos 60 anos.
Criatividade e qualidade
Na sorveteria Bernardino, empreendimento de Orlando e Antônio, era o irmão quem produzia o sorvete. Orlando cuidava da administração.
Um dia, ele conta, o irmão ficou doente. O pai, então, foi chamado para ajudar na produção. Orlando conta que, na época, Bernardino já enfrentava um câncer que lhe trouxe dificuldades para falar. Mas conseguiu orientar o filho. Quando Orlando fez seu primeiro sorvete de creme, o incentivo de seu “mestre” foi fundamental para continuar.
– Não saía o som. Mas ele me chamou, pegou assim no braço: ‘Filho, você nasceu sorveteiro’.
O irmão retornou e a rotina permaneceu a mesma até 1970, quando Orlando decidiu deixar a sociedade e abrir sua própria sorveteria. Conta que o pai faleceu logo após, por volta dos 80 anos.
Antônio ficou com o nome Bernardino e Orlando, então, batizou a sua sorveteria inicialmente de “Cremoso” e depois de “Pisani”.
O estabelecimento do irmão, já falecido, continuou até por volta da década de 80, quando Antônio encerrou as atividades.
Orlando abriu sua primeira sorveteria, a “Cremoso”, na rua Anita Garibaldi, Campos Elíseos, onde ficou por cerca de nove anos. Em 1979, se mudou para o Centro de Ribeirão, na rua Visconde de Inhaúma, em frente à Catedral, com o nome de “Pisani”.
Precisou se mudar com os dois filhos e a esposa para o mesmo prédio. O dono não aceitou alugar só o salão para sorveteria, mas o espaço todo, que tinha a casa ao fundo. Para conseguirem arcar com as despesas, precisaram viver no local.
– Eu morava dentro da sorveteria!
Renato vai explicando de onde vem sua paixão. Para ele, o sorvete foi, sim, encantamento. Conta dos almoços de domingo interrompidos porque era preciso atender ao cliente que chegava na sorveteria.
– Eu não sei como é minha vida sem o sorvete, porque sempre foi assim.
Orlando e sua família ficaram no mesmo ponto do Centro por 23 anos.
– Ali eu criei meus filhos!
A esposa cuidava de toda administração da casa e dos negócios.
– Ela fazia banco, contador, contas, caixa. E eu fabricava. A minha mulher me guiou na vida. Me incentivava, me apoiava.
Trabalhavam sem folga, de domingo a domingo.
Manteve a tradição e continuou vendendo com os carrinhos de sorvete. Também seguiu prezando pela qualidade dos ingredientes que, repete várias vezes, garantem a gostosura do sorvete.
– Eu procurei seguir a linha do meu pai. Sorvete de fruta era feito com a fruta, não essência. Eu usava limão galego, menina! Minha mulher ralava o coco. Não por interesse, mas porque eu gostava do que fazia. Eu tinha amor, sabe?
A inspiração para novas receitas nascia em uma viagem a outra cidade, provando o sorvete de pistache. Ou, então, lendo uma revista que ensinava a fazer bolo floresta negra e adaptando a ideia.
– Eu fiz uma quantidade pequena para ver como ia ser. Virou um sucesso! Ia cereja, chocolates em pedaços… vendia era muito! Fiz também queijadinha. Tinha que me modernizar!
Além dos ingredientes naturais, revela os outros segredos do buon gelato, herança de família:
– Meu pai dizia: a alma do sorvete é a temperatura. É o que dá a estabilidade. Tem que ter qualidade no fabricar e no armazenar. Por isso o equipamento é muito importante, a alma de tudo para conservar o sorvete. Eu nunca deixei essa prática para trás.
Por volta de 1984, decidiu transformar a área onde vivia com a família em padaria. Fez parceria com um padeiro e colocou o negócio para funcionar.
– Ele nunca tinha feito pão na vida! Mas era empreendedor. Ele empreendia e minha mãe trabalhava. Tocavam os dois negócios.
Quem fala é o filho, Renato, com todo o orgulho pelos pais embutido nas palavras.
Com a sorveteria – e muito trabalho – Orlando e Lucilla criaram os filhos, construíram uma boa casa para a família e, depois da aposentadoria, puderam viajar, como Orlando diz, todo contente.
– Vendendo sorvetes eu fiz duas viagens para a Europa! Tô te falando que eu vendi muito sorvete! Fui tocando a vida! Mas comprei esse patrimônio trabalhando, com muito esforço.
Modernidade com tradição
Renato Pisani, que cresceu vivendo o sorvete, até tentou outros caminhos. A faculdade oferecia muitas possibilidades.
– Metade dos meus amigos estão fora do país. É uma decisão difícil. Mas eu não seria feliz tendo que fazer o que eu acho que está errado. Aqui eu tento fazer o que está certo. É a liberdade de decidir. Quem é empreendedor, não quer se submeter.
O pai, Orlando, confessa que não gostou nada quando Renato avisou que estava voltando de São Paulo para trabalhar com a sorveteria e a padaria da família. Havia feito planos para o filho, na área de Engenharia Química. Não contava, porém, com os planos que Renato já fizera, bem antes, dentro de si.
– Se me faz feliz? Muito! Eu não teria outro caminho!
Renato voltou de São Paulo em 1993, aos 23 anos, já pensando em transformar o negócio da família em indústria. Em 1997, abriu, junto com os pais, a fábrica Pisani, na Vila Mariana, bairro pouco urbanizado na época.
Começaram com um prédio pequeno, que foi se multiplicando o tempo e hoje ocupa toda uma esquina.
Em 2002, decidiram fechar a sorveteria da Catedral e vender a padaria. Renato explica que a concorrência grande na região Central, atrelada ao alto aluguel do espaço, apertou as contas.
Não ficaram sem um local de vendas, entretanto. Já haviam colocado para funcionar um ponto na Praça Santo Antônio, número 78, Campos Elíseos. Quando abriram, por volta de 2000, tiveram cautela, para sentir o movimento. À medida em que a procura por sorvetes foi crescendo, reformaram o espaço e ficaram ali por cerca de 15 anos.
– Ficou uma graça a sorveteria ali!
Pai e filho falam com inconformismo dos motivos que os fizeram fechar o espaço, em 2015: o desmazelo do poder público com a praça, que se tornou insegura e inóspita. O local se tornou ponto de venda de drogas.
– Eu só fechei pela praça. Fiquei muito doente. Se tornou um ambiente muito ruim.
Nas palavras de Orlando. Só em 2015 é que ele e Lucilla se aposentaram de vez. Com algumas reticências, como já dito. Ele continua frequentando a fábrica quase diariamente, ainda que seja para tomar um sorvetinho, contrariando as recomendações médicas para o controle da diabetes.
– Meu Deus do céu! Como eu gosto! Hoje mesmo eu tomei na fábrica…
Mais um gosto compartilhado com o filho, Renato.
– Quando você passa ao lado da máquina, dá vontade de tomar! Eu tomaria todo dia!
É Renato, 49 anos, quem administra as fábricas de pão e sorvete. O irmão, advogado, é seu sócio, mas ele fica na linha de frente. Além do trabalho como empresário, dá aulas de química. A rotina, então, começa às 6h, sem hora para acabar.
Em tempos de crise, a luta para prosseguir é intensa. O movimento caiu, a concorrência na área de sorvetes é grande. Procura, então, estar atento às tendências.
O açaí veio para ficar? Ele passou a produzir. Dia desses, um buffet ligou pedindo sorvete de paçoca. Não estava no cardápio da fábrica. Para não perder a venda, criou um sabor novo e agradou. Não sobrou para ninguém!
– Você tem que acompanhar o mercado. Se a gente não se adapta rápido, é eliminado. Tudo é um jogo de estratégia: se você for pequeno com postura de grande, vai quebrar. E o contrário também.
Também tem como prioridade o bom relacionamento com os funcionários.
– Como eu sou professor, acredito que a educação transforma as pessoas.
Hoje, produz em média quatro mil litros de sorvete. Para a estabilidade – e capacidade – da fábrica diz que precisaria produzir pelo menos o dobro. Segue, então, batalhando. Os pães ajudam na balança, produzindo para escolas, cantinas, prefeituras.
Ainda com a modernidade na produção, diz que procura manter a qualidade da família. Usa frutas nos sorvetes que pedem e, alguns sabores – como o de paçoca – são produzidos de maneira artesanal. Ainda faz as receitas do avô. O sorvete de leite, por exemplo, é requisitado por buffets e restaurantes.
Com o empreendedorismo de origem italiana correndo nas veias, passou também a produzir leite e pretende abrir seu próprio laticínio. Percebe que o mercado pede, cada vez mais, a volta ao artesanal. O sorvete feito de leite, ingredientes naturais e amor.
Amor, garante, nunca faltou em nenhuma produção.
– É o nome da família. Quando eu assumi, meu pai disse que o compromisso era de que eu não poderia avacalhar com o sorvete que é o nome da família. Que deveria manter a qualidade.
Por isso, faz questão de ter o mentor sempre por perto. Passa quase todos os dias para buscar o pai antes de ir para a fábrica. Ficam juntos pela manhã e Orlando volta para casa a tarde. Tem um importante compromisso.
A esposa Lucilla está com a saúde debilitada pelo Alzheimer. Já não o reconhece e quase não fala. Dorme em uma clínica, porque precisa de cuidados constantes.
Todos os dias, entretanto, a cuidadora a leva para casa da família. Passa a tarde ao lado do marido, janta com ele e só retorna na hora de dormir. No outro dia, a rotina recomeça.
No negócio que começou por um sonho e cresceu em família, amor nunca faltou. Em nenhuma produção.
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Bom saber! Por mais histórias assim!
Gostaria de saber novo endereço da sorveteria, adorava os sorvetes de vocês.
Fui vizinho da sorveteria, quando na rua Saldanha Marinho. Eu morava na Visconde.
Na época entre 8 e 11 anos. Hoje tenho 81. Sempre fui amigo do Orlando pai de vocês. Só boas lembranças.
Ele me conhece por Tânus.