Vale a pena ler de novo! História publicada pela primeira vez em 6 de março de 2018!
O Chorinho é bar de vanguarda, de samba e de mulher.
Quem está à frente de um dos bares mais tradicionais de Ribeirão Preto usa sempre um batom no rosto e, nos intervalos do atendimento, coloca as pernas para sambar.
Nem sempre foi assim, admite. Tatiana Ferreto, 34 anos, era roqueira de escolher Metálica como banda favorita e ir aos shows do Sepultura.
Depois que chegou a Ribeirão Preto, revisou um tantão de falsas certezas.
A começar pela cidade. Fez de tudo para não morar aqui, porque tinha a – falsa – certeza de que não iria gostar. Hoje, faz de tudo para não sair.
Também tinha a – falsa – certeza de que não gostava de samba.
Hoje, descobriu: “Quem não gosta de samba, bom sujeito não é!”. Tati – ainda bem – não é “ruim da cabeça” e nem “doente do pé”.
Há uma certeza, porém, que nunca foi falsa. Ser mulher em um mundo machista exige um tipo de força que homem nenhum conhece. Isso, Tati descobriu bem cedo.
Engravidou aos 14 anos, de um jovem de 16 que, por ciúme, lhe agredia constantemente. Quando se casou, com outro homem, não sofreu violência física, mas entendeu que a tortura psicológica deixa marcas tão ou mais doídas.
Há dois anos à frente do Bar do Chorinho, perde as contas dos insultos que já ouviu.
– Eles pensam ‘isso é coisa de homem, não de mulher’. E acham que por eu ser mulher, num bar, na madrugada estou em uma vitrine.
Ela ouve frases que fazem embrulhar o estômago. “Sério? Ele falou isso mesmo?”, eu, embasbacada, questionei mais de uma vez ao ouvir seus relatos.
O Chorinho é um bar frequentado, na maior parte do tempo, por pessoas com mais de 30 anos, que têm como característica em comum o apreço à boa música.
– São homens cultos, estudados. Pessoas que você vê na rua e pensa que jamais fariam algo assim. Machismo é machismo. Não existe forma mais branda ou menos. O machismo está em todo lugar!
Infelizmente, essa certeza nunca foi falsa. E Tati não encontrou motivos para mudar de ideia.
Tatiana nasceu em São Paulo, filha mais de velha de quatro irmãos.
Conheceu o primeiro namorado no prédio onde moravam, como vizinhos.
Aos 14 anos, descobriu a gravidez. Ele tinha 16.
– Nós éramos duas crianças!
Os pais deram apoio e a mãe avisou: “Não é porque engravidou, que vai casar!’.
Os olhares tortos, porém, vieram de todo lado.
– Era uma vergonha. Até na família eu ouvia: ‘Vai usar biquíni? Não! Esconde essa barriga!’
Até o parto foi rodeado de julgamentos.
– A dor da contração me fazia achar que eu estava com vontade de ir ao banheiro. A enfermeira dizia: “Vai no banheiro que seu filho vai nascer dentro da privada”.
O bebê nasceu no oitavo mês de gestação e passou 12 dias da UTI. Pela prematuridade, desenvolveu problemas pulmonares que exigiam de Tati, ainda uma menina, cuidados constantes. As internações eram rotina.
Mesmo assim, ela não deixou de estudar. Conta que uma semana após o parto, se recuperando da cesárea, foi à escola fazer as provas bimestrais. Para subir a escadaria que levava até a sala de aula, teve o apoio da mãe.
– Ela dizia que eu não podia parar de estudar. Sempre me apoiou nisso.
Tati dividida o tempo entre o bebê, os estudos e o trabalho. Por mais apoio que os pais dessem, ficou determinado que ela era a mãe e deveria cuidar do seu filho. Aos 15 anos, então, arrumou um emprego na área de seguros bancários.
O namoro conturbado durou até os 17. O namorado lhe agredia e ameaçava, para ficar de boca fechada sobre a violência. Foi preciso que a mãe flagrasse uma das agressões para que Tati, com 15 anos, começasse a somar forças para terminar.
– Eu só consegui terminar de vez aos 17. Mesmo assim, ele me perseguia. Entrava no metrô e gritava que me amava. Se me visse com alguém, partia para cima de mim e da pessoa.
Quando terminou o colegial, entrou na faculdade de Publicidade e Propaganda.
Aos 18 anos, conheceu o homem com quem se casou aos 19. Foi nessa época que os pais decidiram deixar São Paulo e partir para Ribeirão Preto.
– Eu não queria vir de jeito nenhum!
Ela, então, se casou com o namorado e foram morar em Curitiba.
Durou menos de um ano, no entanto. Por lá, no casamento também conturbado, ela sentia falta da família e, quando o marido foi demitido, em 2002, decidiram se render ao interior paulista.
Foi em Ribeirão Preto que Tati somou forças para dar um basta ao casamento, em 2005. Com o marido, teve uma filha que na época da separação estava com um aninho. Os pais, mais uma vez, foram o apoio.
– Por muito tempo, durante o namoro, eu achei que apanhava por culpa minha, que eu tinha feito algo de errado para merecer aquilo. Com meu marido, não havia agressão física. Mas havia muita agressão psicológica. Ele me tratava de maneira autoritária. Tinha muito ciúme.
Foi preciso, mais uma vez, somar forças para o basta.
– O machismo sempre me pegou. Por isso, desde pequena eu falo para minha filha: ‘Não deixe que façam isso com você”.
Depois do casamento, Tati decidiu não deixar mais.
Logo que chegou a Ribeirão, começou a trabalhar em uma choperia, na parte administrativa. Ela era responsável pela coordenação de 59 funcionários. E tomou gosto!
Tanto que decidiu fazer faculdade de hotelaria. Se formou em 2007, já apaixonada pela área.
Dividindo essa paixão, conheceu o homem com quem está hoje.
Juntos, os dois compraram o Bar do Chorinho em novembro de 2015, depois de muito tempo como clientes assíduos do samba. E juntos estão até hoje.
Tati, no entanto, cuida do bar sozinha porque, nos mesmos horários, o namorado administra a pizzaria da qual também é dono.
No começo, o casal somava dois restaurantes em dois hotéis, além do bar. Com a crise de 2016, ficaram só com o Chorinho.
– Nós quebramos o contrato com os hotéis, não tínhamos dinheiro para restituir os funcionários. O que segurou as pontas foi esse bar, velho de guerra.
O Chorinho é um bar de histórias. Reduto da boemia, do samba, da boa música.
Foi por ali que Caburé, conhecido como “o último boêmio de Ribeirão Preto”, juntou gente em volta do violão. Ele conta que o Chorinho era um armazém, que só se tornou bar pelas cantorias que fazia.
Tati, que não é ribeirão-pretana, vai reconstruindo a história do seu bar pelas memórias da clientela.
– Nós sabemos que esse ponto tem mais de 40 anos! Tem clientes que vem aqui desde quando era mercearia.
Todos os dias, de segunda a segunda, o bar abre as portas. Todos os dias, tem música. A roda de samba – atração principal – é de sexta e sábado.
Todos os dias, de segunda a segunda, Tati está atrás do balcão, cuidando do bar e atendendo a clientela. Feriado ou dia útil, faça chuva ou sol.
A casa onde mora com os pais, os dois filhos e os irmãos é vizinha de muro do bar. O Chorinho, então, é seu quintal.
Os pais ajudam no atendimento e, se preciso for, até para a cozinha sua mãe vai. Por ali, todo mundo trabalha contente. É garçonete caindo no samba. É garçom que atende cantando.
Posso atestar, frequentadora que sou.
– Nós somos família. E nosso sucesso hoje é que os clientes veem isso. Aqui, todo mundo se sente no quintal de casa.
Entre os machismos do dia-a-dia, muita coisa faz compensar a rotina.
– Eu perdi muitos amigos, porque não tenho mais vida social. Mas aqui, ganhei muitos outros.
Tati, porém, não faz questão de clientela que não compensa.
Conta que no começo, quando ouvia insultos ou chegavam queixas das garçonetes, caía no choro. Uma delas chegou a ser assediada fisicamente, enquanto servia uma mesa.
– Eu não sabia o que fazer!
Hoje, já sabe.
Chegou a expulsar o cliente machista que estava sempre a espalhar violência.
– Ele ainda tentou voltar. E nós fomos bem claros: ‘Aqui não te atendemos mais’.
Conta que até mesmo entre os músicos há desrespeito.
– Tem músico que quer falar mais grosso comigo porque sou mulher. Meu pai chega, e a conversa muda.
Depois de uma vida brigando por respeito, a sensação é de vitória parcial.
– Fui muito guerreira e ainda sou. Não falo que sou vitoriosa, porque ainda não ganhei. A vida, aliás, é uma eterna batalha. O ideal é estar sempre guerreando. Uma hora, estamos em cima. Outra, em baixo.
O mundo, ela bem sabe, ainda tem muito a evoluir. Já trabalhando em bar, buscou outra faculdade. Começou a cursar Letras e dá aulas em uma escola, no período em que o bar está fechado.
– É muito pesado o que a mulher ainda sofre hoje. Por mais que tenhamos mulheres à frente da política, conquistando espaços, ainda há muito machismo.
Faz sua parte pela mudança. Atrás do balcão de um bar, na sala de aula ou em casa, marca seu território. Briga, diariamente, pelo seu espaço.
Sem perder a ternura de cair no samba.
Entre os sambistas preferidos da roqueira, está Roberto Ribeiro. Refrão pertinente para finalizar: “Por mais que essa dor possa durar/ É preciso amar pra se recompor”.
Tati sabe bem.
*Quer traduzir essa história em libras? Acesse o site VLibras, que faz esse serviço gratuitamente: https://vlibras.gov.br/
Assine História do Dia por R$ 13 ao mês ou faça uma doação de qualquer valor AQUI.
Nos ajude a continuar contando histórias!
Nossa fiquei impressionada com a estória dela parabéns que Deus continue te abençoando e sucesso moro em Ribeirão muitos anos não conheço seu bar mas vou conhecer com certeza para conhecer essa guerreira de perto
Mercearia foi do Lúcio,que vendeu para o Fernando,que vendeu para outro que não lembro o nome,que vendeu para o Lukas (irmão dele dono de um bar na rua Piracicaba) que fez todo essa estrutura do chorinho e posteriormente vendeu a Tati.
Linda a sua história parabéns mulheres assim que precisamos parabéns.