Trajetória de Sônia é feita de música, arte e força

16 janeiro 2020 | Histórias do Proac 2019/2020

Clique no play para ouvir a história:

 

 No quintal de Sônia Paschoalick tem remédio para tudo. Chá de gengibre com açafrão para a resistência, boldo para o fígado, boa música para o coração, artesanato para acalmar a alma.

Com esse arsenal de coisas do bem, ela enfrenta o que a vida traz. Engana o tempo, escondendo os 68 anos atrás de um pé de babosa regado com sua visão sempre à frente.

– Parece que eu tô falando de outra pessoa. Como eu fiz tudo que fiz com alegria, felicidade? Eu nem acredito…

Se casou aos 18 anos, grávida do primeiro filho, em pleno início da década de 70, com um músico de espírito livre e ideias políticas efervescentes. Diz que passou aí a viver da sua forma.

Os dois montaram uma banda e ela começou a cantoria que nunca parou. É conhecida em Ribeirão Preto, entre outras tantas coisas, pela voz rouca que canta Janis Joplin como ninguém. Blues, jazz, rock são os estilos preferidos da cantora que não se considera hippie, mas se “identifica com alguns traços”, como diz.

Recebia em sua casa os hippies de caravana que passavam por Ribeirão, além de artistas, músicos, gente de todo tipo.

– Nos anos 70, falavam que a gente era hippie, mas, se fosse, eu teria que viver no mato. Hippie é desprendido de tudo que é ligado a esse mundo consumista. Sou simpatizante.

Entre desprendimentos, em sua casa há uma única televisão, que fica guardada no porão e só pode ser usada em época de Copa do Mundo. Nutre pelas telinhas um pavor bem embasado. Só há pouco mais de um mês, se rendeu ao celular, depois de muita insistência dos filhos.

– Meus filhos cresceram correndo aqui no quintal. Isso faz toda a diferença na vida de uma criança. Eu falo para os amigos: quer dar um presente para seu filho? Não tenha televisão. Ele vai ver as plantas, ouvir as coisas.

Diz que nunca tomou anticoncepcional, porque considera o remédio uma “bomba” para a saúde. Teve seis filhos, criados com muito trabalho na costura durante o dia e na música a noite. Os meninos e meninas, de pequenos, já acompanhavam os pais pelos palcos.

Sonia Paschoalick Ribeirão Preto

Trabalhou por décadas costurando e criando: roupas, lingerie, artesanatos de todo tipo e, mais recentemente, sapatilhas de couro bordadas. Se encontra algo diferente, não sossega até descobrir o jeito de fazer. Telas, macramê, pinturas, pedras, biscuit, tear: a lista não para.

Encontrou no artesanato o jeito de segurar a alegria, que tentou ir embora. Há seis anos perdeu a filha, Paula, aos 38. Era sua companheira. A segunda mais velha, foi apoio na criação dos irmãos.

– Eu sinto muita falta, mas não tenho coragem de me entristecer.

Encontrou forças nas plantas, nas árvores, nos artesanatos, na música. No arsenal de coisas do bem que curam tudo.

– Alimenta a alma da gente. A criatividade é como uma chama dentro.

Sonia Paschoalick Ribeirão Preto

Sônia faz aniversário em junho, junto com Ribeirão Preto, cidade onde veio viver aos nove anos, com os pais e os cinco irmãos.

O pai tinha bar e a mãe cozinhava os quitutes que eram vendidos por lá.

Começou a cantar ainda menina. Quando tinha por volta dos cinco anos, o pai a levava para participar de concursos de moda de viola e canto em circos e parques. Ensaiavam juntos e sempre voltavam com a vitória.

Conforme foi crescendo, porém, teve que restringir o canto ao chuveiro.

– Minha família era muito simples, em cidade do interior. As mulheres que cantavam eram de cidade grande. As pessoas  chamavam as mulheres que cantavam de prostitutas, mesmo que não fossem.

Ela pôde estudar até o segundo ano do científico, como era chamado o Ensino Médio na época. Depois que engravidou, parou com os estudos, foi fazer música e criar as crianças, que foram chegando uma a uma, em escadinha. O filho mais novo tem 32 anos e nasceu quando ela tinha 36. Todos nasceram de parto normal.

– Eu saía do hospital e horas depois já estava fazendo tudo normalmente.

Sônia jura que casou grávida e virgem. E aos meus olhos arregalados pergunta:

– Você não acredita? É verdade!

A gravidez, ela diz, aconteceu durante um amasso. Os pais determinaram: vão ter que casar. O que para ela soou como carta de liberdade.

Viveu com Zé Maria, o primeiro namorado, 37 anos de um amor todo deles. Só se separaram quando ele faleceu, em 2007. Sônia diz que só depois de viúva se relacionou com outro homem.

Descreve o marido como um “pensador, agitador cultural e político”. Foi por esse conjunto que se apaixonou, atrelado à guitarra daquele jovem, que tocava Beatles e tinha uma porção de vivências no mundo da música.

Zé não se adaptava às regras do cotidiano, às convenções. Sônia, então, assumiu as responsabilidades financeiras da casa com seu trabalho na costura, sem folga ou feriado. Fazia vestidos de noiva e todo tipo de roupa. Criatividade pulsante, criava seus próprios modelos.

– Os dons artísticos eu não fiz nada para tê-los. Mas da batalha que venci, eu me orgulho muito. Foi árdua, mas eu venci.

Os seis filhos puderam seguir as carreiras que escolheram, cursando faculdades, indo pelo caminho das artes, como espelho dos pais.

A música nunca deixou a rotina da família. O trabalho duro começava para Sônia às 6h, mas não faltava energia para cantar na noite. Ela e o marido integraram bandas conhecidas em Ribeirão, como o Grupo 17. Diz que recebeu convites para cantar fora da cidade, mas era preciso ficar. Quando a festa acabava, os filhos e a casa a estavam esperando.

Com as contas sempre apertadas, costurava suas próprias roupas e as dos pequenos também.

– A gente usava o dinheiro para comer bem, comprar material escolar e pagar o dentista.

A morada simples, porém, era abrigo para ensaios de bandas, reuniões de artistas. Estava sempre cheia de cultura e alegria.

– Eu acho que o ser humano é artístico por natureza. Todos somos criativos por natureza, mas isso vai sendo podado durante o crescimento da criança.

Só diminuiu o ritmo de costuras quando os filhos começaram a trabalhar e puderam ajudar nas finanças. Não parou totalmente, porém. Depois que Paula faleceu, vieram as sapatilhas bordadas.

– Eu precisava de alguma coisa para me distrair, mas tinha que vender também, para não parar de fazer.

Continua, então, frequentando feiras de artesanato com sua arte, local de venda conquistado décadas atrás. Encanta com o colorido dos calçados que cria.

Sonia Paschoalick Ribeirão Preto

Sônia diz que não sai muito de casa. Anda desgostosa com os rumos que as coisas foram tomando politicamente, socialmente, humanamente.

– Eu sinto uma desesperança muito grande. As pessoas perderam a essência, a relação com a natureza. Acreditam na tecnologia, no consumismo desvairado. Eu tenho meus filhos, que são esperança. Mas é um pouquinho perto do mundo.

Se refugia no quintal cheio de plantas, de onde vai tirando o que precisa. Diz que só vai ao médico em casos extremos, como uma fratura no braço pouco tempo atrás.

Do mais, toma chás diariamente e outras cositas que colhe do pomar.

Diz que é “completamente ateia”, mas nem tanto.

– É aquilo: “No creo en brujas, pero que las hay, las hay.

Quando fala que tem 68 anos, as reações são sempre de surpresa.

– Eu tive uma vida muito difícil, sabe? Mas eu nunca me preocupei. Sempre achava que ia dar certo. Eu acho que eu vejo a vida diferente. Você imprime o tamanho dos problemas.

Continua cantando. Inclusive, na noite de Natal estava no palco do Armazém da Baixada, espaço cultural administrado por seus filhos. Depois que a Paula morreu, perdeu a graça com as festas de final de ano e decidiu, então, que todo Natal passaria no palco.

Seus amigos, na maior parte, são décadas mais jovens.

– Algumas pessoas da minha idade ficaram azedas, fofoqueiras, neuróticas com a limpeza da casa, são retrógradas.

Entre as crianças, é aquela que dá bronca sem pestanejar, mas também dá os presentes mais diversos e as conversas mais sinceras. É a “vó Nani” dos 10 netos e netas.

– Os adultos não respeitam as crianças. É celular na mão, tablete. Eu dou atenção para elas e elas se sentem respeitadas.

Atenção e caleidoscópio, ábacos, brinquedos de montar: o convencional nunca lhe interessou.

O desgosto com os dias atuais não virou amargor, garante. Continua conversadeira, trocando papo em filas e esperas. Não por muito tempo, porém. Se o assunto vai para política, prefere a companhia das plantas.

No quintal de Sônia, afinal, tem remédio para tudo.

 

*Quer traduzir essa história em libras? Acesse o site VLibras, que faz esse serviço gratuitamente: https://vlibras.gov.br/

 

Assine História do Dia por R$ 13 ao mês ou faça uma doação de qualquer valor AQUI.

Nos ajude a continuar contando histórias!

 

Compartilhe esta história

0 comentários

Outras histórias