Antônio Carniel: o gênio autodidata da eletrônica

27 maio 2020 | Histórias do Proac 2019/2020, Parte da gente

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Vale a pena ler de novo! História publicada pela primeira vez em 7 de março de 2017. 

 

No dia 7 de março de 2017, Antônio Carniel completou 89 anos. Disse que iria passar o dia na oficina, entre os aquecedores, compressores, transformadores e outros tantos aparelhos eletrônicos que conhece bem.

Não queria festa ou presentes, porque “carinho é todo dia”. E abriu um sorrisão quando soube que sua história iria ser publicada como homenagem de aniversário.

– É mesmo? Que coisa boa!

Com a humildade de um gênio que não usa pedestais.

– Se eu me sinto realizado? Ainda falta muito a aprender! A gente nunca aprende tudo.

Diz o homem que aprendeu a consertar todo tipo de eletrônico sem curso de engenharia, compreende italiano, alemão, espanhol sem sequer terminar o ensino primário, tem aparelhos seus espalhados Brasil afora e não passa um dia sequer sem trabalhar.

– Eu aprendi: não tem coisa que seja impossível de ser feita. Tudo é possível de se fazer.

“Entrei na nave em 7 de março de 1928. Não chego a me lembrar bem”, Antônio começa assim o diário que escreveu com as memórias da juventude. Explica a metáfora:

– Cada planeta é uma espécie de nave, onde está todo o conjunto.

Tão logo entrou na nave, descobriu o trabalho. Aos nove anos, ajudava o pai a cuidar da roça, morando em uma fazenda na região de Ribeirão Preto. Entre as lembranças desse tempo, a miséria se mistura à nostalgia.

Até os nove anos, andava 10 quilômetros por dia para ir e voltar da escola. A distância – e a barriga sempre vazia – não o deixaram continuar. Aprendeu a ler, mas não a escrever.

Por pouco tempo.

Na adolescência, teve uma paixão com a filha do patrão. Os dois se comunicavam por carta. O namoro não durou. A moça quis marcar o casamento e Antônio, com 16 anos, “desapareceu”, como diz entre gargalhadas. O aprendizado, entretanto, foi eterno.

– Eu pedia para meu irmão escrever as cartas para mim. Em um mês, eu aprendi como se escrevia.

 

 

Ainda na fazenda, descobriu seu encantamento pelos eletrônicos, com o único aparelho que a família conseguiu comprar. Um rádio usado, que juntava a família toda noite, quebrando o silêncio.

Antônio ficou encantado. E decidiu que iria entender como é que o som saía por aqueles fios. Enviou uma carta para um Instituto Radio Técnico Monitor, pioneiro em educação à distância no Brasil, e passou a estudar eletrônica por correspondência.

– Chegaram as primeiras lições e eu não sabia nem o que era. Quando fui em São Paulo buscar diploma, não tinha nenhuma prática.

Quando terminou o curso,  já morava em Ribeirão Preto. Com a industrialização do trabalho, a família não conseguiu continuar na fazenda.

Ele buscava trabalho na área de eletrônica, enquanto estudava com revistas de uma editora espanhola.

– Nas lojas, ninguém ensinava nada. Mandei uma carta para essa editora e eles me mandavam as revistas. Eu não sabia espanhol, mas entendia tudo que estava nas páginas.

Passou um tempo em São Paulo, trabalhando com um alemão que ensinava a base de xingamentos.

– Ele me chamava de burro umas 10 vezes ao dia. Mas fui aprendendo as coisas…

Antônio voltou para Ribeirão, mas a falta de emprego continuava. O pai avisou: “Se ninguém trabalhar, vai faltar comida em casa”.

– No outro dia, eu passei a mão na enxada e fui cortar cana na usina. Minha mão ficou cheia de bolha. Fiquei dois meses lá.

Conseguiu um emprego nas indústrias Matarazzo em 1951, aos 23 anos. Cuidava dos motores das máquinas. No começo, não tanto quanto gostaria.

– Eu só tinha que ligar três motores de manhã e desligar a noite. Aquilo para mim era uma doença. Tomar conta de motor? Eu estava acostumado a trabalhar!

Começou pedindo para o chefe deixá-lo reformar as peças que estavam estragadas. Em pouco tempo, era o funcionário de confiança até mesmo dos engenheiros alemães.

– Foi lá que aprendi a mexer com máquinas grandes. O engenheiro alemão desenhava as coisas para que eu entendesse. Ele me dizia: “É tudo igual. Tudo igual”. E era mesmo.

Antônio trabalhou por 22 anos nas indústrias Matarazzo. Nos meses finais, quando a empresa já estava fechando as portas, ganhou o material para construir uma casa própria. Conta, porém, que não foi suficiente para a casa toda.

Viveu com a esposa e os cinco filhos nos cômodos mal acabados, sem telhado, sem nada.

– Cada um pegava seu cobertor e procurava um lugar onde não chovesse. As pessoas passavam pela rua e eu escutava quando elas diziam: ‘Nossa! Coitados! De onde será que vieram?’. Depois, quando eu acabei a casa, as mesmas pessoas continuavam dizendo: ‘Coitados! Para onde será que eles foram?’. A gente estava ali!

Consegue rir até dos piores momentos. Com a certeza de que ficaram longe.

Depois que deixou a Matarazzo, montou uma oficina de conserto de televisores, mas durou pouco.

Logo, começou a fazer serviços para indústrias de todo o Brasil. Na Mabel, instalou 29 máquinas empacotadoras, além de toda parte eletrônica.

Diz que viajava de Sul a Norte instalando e consertando maquinários que vão de controladores de temperatura para forno à cabine de força com 30 mil volts.

– Para mim, aquilo era simples. Eu não sei como. Eu não ficava preocupado. Eu sabia que ia funcionar.

Em oito anos, conseguiu terminar a casa – onde vive até hoje. Diz que não conseguiu antes porque “nunca soube cobrar pelos serviços”.

Colocou o primeiro filho na faculdade e, a partir daí, ficou mais fácil dar estudo para os outros.

– Muita gente fez pouco caso. Mas meus filhos falam: ‘Meu pai é um gênio’. Nunca deixei uma máquina parada. Qualquer tipo de máquina.

Aos 89 anos, Antônio Carniel não tem problemas de saúde.

– Remédio? Eu só tomo vitaminas. Ah, e esse negócio aqui!

Mostra um vidro de própolis.

– Tem cara de 67 anos que não faz nada. O trabalho ocupa a mente. Com 67 anos, eu estava andando de teco-teco para chegar a indústrias do Brasil inteiro. Até hoje tenho pesadelo! Como balançava!

Cai de novo na risada.

Na oficina, mostra balança de precisão que veio do laboratório da USP, compressores de ar, aquecedores.

– Ninguém mais conserta isso. Vem tudo para cá.

Conta que os filhos foram contagiados pelo encantamento eletrônico. O mais velho se formou engenheiro. Agora, vê o mesmo nos netos.

– Meu netinho, Francisco, tem sete anos. Vem aqui e conhece tudo! Sabe o nome de todas as peças. Eu digo: você vai ter que se virar como eu!

O rádio não é mais usado, como na fazenda. Mas ainda é o companheiro do dormir ao acordar. Desperta às quatro da madrugada todos os dia e fica na cama ouvindo as primeiras notícias. Às 20h30, está na cama de novo. Escuta o som até adormecer.

– Eu fui programado para trabalhar. Quando você faz o que gosta, não importa a hora e nem o dia.

Na casa derradeira da avenida comercial, zona nobre de Ribeirão, vive com a esposa. Não vende, não troca, não importa a proposta. Só sai dali para outra nave.

 

 

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Acesse o site VLibras, que faz esse serviço sem custos:
https://vlibras.gov.br/

 

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2 Comentários

  1. Bia Carniel

    Ele é a pessoa mais incrível!!

  2. Edson Lopes Marinelli

    Que exemplo de vida. Parabéns para esse verdadeiro homem na sepcao da palavra.

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