Ribeirão-pretano Armando criou a bolsa de sangue brasileira

26 maio 2020 | Histórias do Proac 2019/2020

Clique no play para ouvir a história:

 

Vale a pena ler de novo! História publicada pela primeira vez em 22 de junho de 2017!

 

Em um caderno guardado no fundo da gaveta ou entre os livros da prateleira? Em folhas protegidas por um cofre ou no laboratório onde, para entrar, é preciso assinar termo de confidencialidade?

Onde estará a fórmula secreta?

Armando é dono de um segredo.

Parece trailer de seriado e, quando a história vai se desenrolando, a ficção quer tomar conta da realidade. Falha na tentativa. A história de Armando é – bem – real.

Há mais de 20 anos, ele criou a única bolsa de sangue brasileira, descobrindo a forma correta de fabricar o plástico que conserva o sangue nas condições adequadas.

E decidiu que a fórmula ficaria secreta, restrita às paredes da fábrica onde trabalhava quando produziu a primeira unidade de seu experimento.

Os pedidos para que revelasse o segredo foram muitos desde a década de 90. Resistir a todos é uma questão de princípio próprio.

Nem mesmo patenteada a bolsa de sangue foi. Em comum acordo com a empresa, ele entendeu que a instituição, onde confeccionou a primeira bolsa e que o auxiliou nas pesquisas, poderia ser a única a continuar produzindo.

Hoje, já aposentado, ensinou outro funcionário a confeccionar o especial plástico. Na fábrica, porém, é preciso que o profissional se comprometa – de papel passado – a, assim, como Armando, guardar segredo por toda a vida.

– As pessoas que sabem da história me chamam de ‘pai da bolsa de sangue’. Isso você pode dizer a meu respeito: a única bolsa de sangue nacional foi criada por Armando Valladas Verceze.

Armando Valladas Verceze criou a bolsa de sangue nacional

Armando não se tornou o criador da bolsa de sangue de um dia para o outro, é preciso salientar. Construiu seu caminho passo a passo, entre um tanto de dificuldades e outro tanto de confiança e dedicação.

Até os 15 anos, viveu na fazenda, ajudando o pai nos trabalhos com a terra. Vieram para Ribeirão Preto – pai, mãe e cinco filhos – porque a vida na zona rural já estava penosa demais.

Para ele, foi daquelas mudanças cheias de razão de ser.

Em Ribeirão, conseguiu trabalho ajudando o tio, que era médico e professor de Medicina. Começava ali o encantando de Armando pela área da saúde. Como estagiário, ele ajudou em pesquisas e descobriu que, um dia, queria ele mesmo ser o pesquisador.

Quando chegou a época de prestar o vestibular, veio o dilema:

– Eu não sabia se queria ser médico ou farmacêutico. Eu sabia que queria fazer pesquisas, descobrir as coisas.

 

 

Passou três anos decidindo, sem deixar o trabalho junto ao tio. Optou pela farmácia, porque entendeu que estaria em contato direto com a produção.

(A bolsa de sangue, até então, nem passava pelas ideias mais remotas)

A faculdade, também é preciso salientar, não foi cursada com facilidade e tempo a sobra.

Aos 24 anos, quando passou no vestibular da USP Ribeirão Preto, era recém-casado e acabara de ter sua primeira filha.

É nessa hora que interrompe o discurso, olha para a esposa – que acompanha toda a entrevista – e explica o porquê de ela estar ali, participando do relato dessa história.

– Grande parte do que eu sou, eu devo a ela. Ela foi a minha força.

E, então, fica claro porque sempre se referia no plural às conquistas da vida.

– Nós começamos a fazer faculdade e aí foi uma luta.

O curso de farmácia era integral. Então, para conseguir manter as contas, ele trabalhava madrugada sim, outra não no laboratório do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto.

Aos finais de semana, quando não tinha aula, trabalhava como garçom em um clube da cidade. Começava na sexta à noite e só parava no domingo.

– O custo emocional de tudo isso para a minha família foi muito grande.

A rotina foi essa por quase três anos. Quando entrou na empresa JP, de produtos farmacêuticos, em 1982, foi pai de sua segunda filha. Mas pôde, também, terminar a faculdade um pouco mais aliviado.

Não sabia que na empresa iria descobrir seu grande feito e só sairia dali 30 anos depois, já aposentado.

Armando Valladas Verceze criou a bolsa de sangue nacional

Armando começou na empresa farmacêutica como funcionário da área de controle de qualidade. À medida em que ia se formando farmacêutico, foi crescendo de cargo.

Em 1988, chegou ao cargo de gerente da indústria de bolsa de sangue, em Campinas.

Ele conta que no Brasil havia cinco fábricas de bolsa de sangue, que foram interditadas pela Vigilância Sanitária de 1985 a 1987.

Uma delas, era a fábrica da JP em Campinas que, quando pôde reabrir as portas, tinha como meta a fabricação da bolsa de sangue própria e aprovada pelo Ministério da Saúde.

Começava ali a descoberta de Armando.

O processo foi longo. Ele explica que a grande dificuldade não é confeccionar a bolsa – trabalho que pode ser feito por outras empresas. Mas confeccionar o plástico que faz com que  o sangue não perca suas propriedades.

– Havia muita pressão e muito medo, porque esse mercado era controlado por empresas multinacionais. Diziam que o plástico do Brasil não é bom. O que mostramos não ser verdade.

Para embasar sua pesquisa, entrou na Pós-graduação de Engenharia Química na Unicamp e, em 1996, quando a bolsa já estava sendo comercializada Brasil afora, publicou a primeira tese comprovando suas pesquisas.

Além de criar a bolsa de sangue comum, criou também o que considera seu “grande feito”, seu “orgulho”, em suas palavras. Descobriu o plástico que aumenta o tempo de armazenamento das plaquetas de três para cinco dias, mantendo o material nas condições saudáveis para ser usado por pacientes que precisam.

– Essas mesmas fórmulas são produzidas até hoje. Dezenas de empresas tentaram fazer o plástico, mas não conseguiram o registro do Ministério da Saúde.

O nome de Armando foi estampado nas etiquetas das bolsas de sangue Brasil afora e até mesmo em outros países, para orgulho do criador, da esposa, das três filhas.

– Em termos sociais, os principais benefícios de se ter uma bolsa nacional são o menor custo, a produção em larga escala, que gera empregos, e a segurança nacional: se houver qualquer tipo de tragédia, nós temos nossa própria bolsa. Não dependemos de outros países.

Armando Valladas Verceze criou a bolsa de sangue nacional

Armando se aposentou aos 60 anos, em 2012.

Não foi fácil deixar seu legado, mas foi uma decisão bem pensada.

Na casa de quintal largo, brinquedos se acumulam. O criador da bolsa de sangue, hoje, é puro amor. Fala dos netos durante toda a entrevista, mostra as fotos da família, conta das tardes em que o quintal vira campo de futebol.

Diz que as três filhas estão sempre por ali.

– Hoje eu tenho a sensação de dever cumprido, porque sinto que tenho o respeito das minhas filhas. Elas parecem se orgulhar do pai que tiveram.

Diz que hoje, em toda América Latina, existem cinco indústrias que fabricam bolsa de sangue, mas apenas duas – entre elas a JP – não são controladas por empresas do exterior. No Brasil, são duas fábricas, apenas a JP inteiramente nacional.

A sua bolsa de sangue continua a única produzida inteiramente pelo Brasil.

Agora, aposentado, dá aulas de farmácia e presta consultoria a empresas do ramo que estão começando.

– O meu foco atual é pegar um pouco do que eu sei e passar, principalmente, para empresas pequenas.

Passa quase tudo o que sabe. O segredo continua guardado a muitas bolsas.

 

*Quer traduzir essa história em libras?
Acesse o site VLibras, que faz esse serviço sem custos:
https://vlibras.gov.br/

 

Compartilhe esta história

0 comentários

Outras histórias