Regina Scatena cresceu no Edifício Diederichsen e construiu ali parte de sua história

10 maio 2021 | Destaque, Patrimônio em Memórias

             

Esta história faz parte do projeto “Patrimônio em Memórias” realizado com apoio do Proac LAB, programa da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo.

Texto e fotos: Daniela Penha

Ilustração de Luciano Filho, exclusivamente para o projeto “Patrimônio em Memórias”

O som ecoava pelo apartamento e sinalizava que a sessão de cinema acabara de começar. O quarto onde Regina vivia com os pais e irmãos ficava na mesma altura do Cine São Paulo. Residenciais dividiam espaço com o cinema, o hotel e as salas comerciais que compunham o Edifício Diederichsen.

Regina Helena Pinzan Scatena teve a sorte – ou não – de dividir paredes com a cabine onde eram transmitidos os filmes.

– O gerente era primo da minha mãe, mas a censura não permitia que eu fosse, porque era ainda nova. Eu ouvia o som do filme e ficava imaginando…

Anos depois, assistiu o Diário de Ane Frank e compreendeu por que o som de ambulâncias, ainda hoje, incomoda.

– Nunca mais saiu da minha memória.

Não é a única recordação. Aos 71 anos, refaz em palavras detalhadas os corredores onde andava de bicicleta: uma grande aventura. Conhecia cada vizinho, com seus apartamentos e manias. Fez da Praça XV, logo em frente, seu grande quintal.

– Ela me fascinava. O nosso apartamento era muito pequeno e, então, eu ficava solta por aquela praça imensa. Era a mais bonita que eu conhecia. Era a minha praça.

Hoje, evita passar em frente ao prédio. Desocupado e sem previsão de quando irá abrir as portas novamente, entristece as boas lembranças.

– Se eu pudesse, teria comprado o Diederichsen e transformado o Cine São Paulo. Todo aquele espaço… Não dá para entender! Ver o que era, o que podia ser e no que foi transformado: para que ficar fechado? Vão esperar acabar?

Regina, que cresceu ali, no quarteirão que é todo patrimônio de Ribeirão Preto, quer guardar as memórias.

– Nós precisamos ter o laço afetivo para olhar nosso patrimônio como parte da nossa história. O que vamos contar? Aqui tinha isso? Se eu puder olhar e falar ‘eu vivi aqui’, então, há a preservação.

               

Edifício Diederichsen Ribeirão Preto

Amizade entre corredores  

Foram quase 20 anos morando no primeiro edifício vertical de Ribeirão Preto e considerado o primeiro multiuso do estado de São Paulo. Quando seus pais deixaram a rua Floriano Peixoto e se mudaram para o Diederichsen, entre 1950 e 1951, Regina tinha por volta dos dois anos de idade.

     – Fui crescendo naquele prédio imenso! Era um motivo de orgulho morar lá.

Seu pai era ourives. A família morava no terceiro andar e a sala onde ele comercializava suas peças ficava no segundo piso.

– Durante muito tempo, ali era um reduto de pessoas de muitas posses, fazendeiros, herdeiros.

O prédio tinha seis andares. O primeiro e o segundo eram comerciais, o terceiro e quarto residenciais e no quinto e sexto ficavam o Grande Hotel.

– Eu me lembro de poucas crianças e muitos adultos.

Comunicativa e curiosa, a menina fazia amizade com toda a vizinhança.

– Naquela época, todo mundo era amigo. Não tinha essa de “conhecido”. Quando você ia falar de alguém, já dizia logo: ‘Ele é meu amigo’!

 Os apartamentos variavam conforme o poder aquisitivo de seus moradores.

Regina ainda se lembra da enorme sala de jantar da vizinha do terceiro andar. Os móveis de madeira, a decoração cheia de detalhes.

– Eu era fascinada por aqueles móveis.

Essa família, ela conta, vivia em um conglomerado de apartamentos que pegava o quarteirão todo, da rua Álvares Cabral até a General Osório.

– Eles tinham cozinheiros, copeiros, babás. E eu frequentava o apartamento numa boa. Eles me chamavam: vem jantar! E eu ia! No mesmo espaço, havia uma diferença muito grande de poder aquisitivo.

Os vizinhos mantinham a amizade, entretanto, além dos metros quadrados. Relembra a dona Sofia, mãe solteira, que trabalhava na primeira loja da Kopenhagen de Ribeirão Preto e, toda semana, lhe presenteava com chocolates.

A família Gabarra se dividia em consultórios odontológicos e médicos.

No quarto andar, Willian comercializava produtos importados no apartamento onde morava e surpreendia a clientela.

– Aquilo era o máximo! Whiskies, bronzeadores. Cá entre nós, naquela época era contrabando. Depois é que abriu. Tudo o que não fosse feito no Brasil tinha o fascínio das pessoas. A gente não se deu conta… fomos levados a consumir cada vez mais o que vinha de fora…

O apartamento onde ela vivia com o pai, a mãe e os dois irmãos ficava na rua São Sebastião, mas com a vista para a parte interna. Da sua janela, Regina via o telhado do Cine São Paulo, as árvores da praça e o hotel Umuarama.

Os cinco dividiam uma sala, um quarto, um banheiro e uma copa. Não havia grande sala de jantar e móveis suntuosos. O que, para a menina, foi mais um motivo para fazer do prédio todo – e de seu entorno – o maior quintal que já se inventou.

– Eu rodava mais do que notícia ruim! Aquilo era o meu mundo!           

Edifício Diederichsen Ribeirão Preto

Centro de memórias

No Theatro Pedro II se encantou pelas artes. O pai, além de ourives, era cantor lírico e integrava o coro da Orquestra Sinfônica.

– Me lembro perfeitamente de ir aos ensaios. Até hoje, o melhor lugar do teatro para mim é a coxia. Prefiro o ensaio da orquestra que o concerto.

Entre 1997 e 2020, trabalhou no Theatro que é tão parte sua, como gerente artística. Entre idas e vindas nesse período, somou 12 anos “de casa”.

– As pessoas diziam que eu exagerava, me entregava demais. E acho que tinha que ser assim mesmo porque é muito valioso aquele patrimônio.

Cresceu também rodeada pelos principais pontos comerciais de Ribeirão naquela época: Pinguim, cafeteria Única, lanchonetes frequentadas. Quando já tinha por volta dos 12 anos, o pai criou uma regra um tanto impossível de ser cumprida: “Não quero você passando na esquina desses lugares”. Hoje, Regina cai na risada:

– Eu não podia sair de casa! Imagine! Eu passava, sim! Era meu caminho! E ele me chamava sempre, porque sempre tinha algum conhecido que me dedurava. Eu tinha um monte de vigias! Como a vida mudou…

Estudou na Escola Estadual Fábio Barreto, que ficava a poucas quadras de casa, e também visitava com frequência a avó, que morava perto do que hoje é o Shopping Santa Úrsula.

– Ninguém tinha medo de deixar a gente na rua. Era muito mais fácil lidar com os filhos do que agora.

Olhava o Hotel Umuarama da janela e planejava uma aventura.

– Enquanto eu não cheguei no alto da torre não sosseguei.

A vista, ainda hoje, é uma das mais belas da cidade.

Edifício Diederichsen Ribeirão Preto

A inauguração das Lojas Americanas foi a grande diversão da meninada. A escada rolante era a grande descoberta.

– As crianças não saíam dali, inclusive eu. Havia a sensação de que as coisas estavam mudando, o que tinha na capital estava chegando, era o progresso vindo.

Hoje ela entende que a chegada dessa grande loja era um sinal de que os tempos estavam sendo transformadas por completo.

– Uma loja muito moderna em um pedaço que era pura história! Tudo foi se modificando com uma rapidez muito grande… o maior prédio era o Umuarama, que hoje é Hotel Monreale. Nem passou pela cabeça da gente prédios de 30 andares! Vivi ali 20 anos e é pouco tempo. Eu não percebi a mudança… vivia por conta daquele pedaço.

Regina viveu o Centro de Ribeirão Preto na época em que tudo acontecia naquele espaço: do início de namoros a manifestações políticas.

– O footing era na praça, os namorados iam no cinema, tudo acontecia ali. Depois é que mudou para a avenida Nove de Julho. E o cenário ali também se transformou. Vieram os bares, começou a descaracterizar. Eu já tinha uns 20 anos.

Sua família se mudou do edifício por volta de 1969, quando ela tinha 20 anos. Os pais construíram uma casa na Vila Seixas.

– Foi tão estranho… era longe!

O pai continuou trabalhando como ourives no Diederichsen. Só parou meses antes de falecer.

– A paixão dele era aquele trabalho: criar joias, desenhar, derreter o ouro. Hoje eu penso: quantos herdeiros podem estar usando as peças que meu pai fez?

Edifício Diederichsen Ribeirão Preto

Preservar o afeto

Regina viu muitos casais nascerem na praça, mas não foi ali que conheceu seu marido. Essa história também daria capítulo à parte. Todo o contato inicial foi no Centro. Foram apresentados por uma prima e uma irmã dele, com a profecia: “O dia em que conhecer o Paulo, vai se casar com ele”.

Se viram a primeira vez na casa da família Biagi, que hoje abriga a Casa da Memória Italiana, importante espaço de preservação da memória. Pedro Biagi, antigo dono do imóvel, havia falecido. Paulo, que se tornou seu marido, era seu neto e veio de São Paulo para o velório.

– Uns dias depois, elas (prima e irmã de Paulo) arrumaram um jeito de eu me encontrar com ele. Fomos em um restaurante na Amador Bueno, com música ao vivo.

Após um ano, em 1975, estavam casados e seguem, há quase meio século. Relembra que na noite que antecedeu o casamento dormiu no casarão lindo da família Biagi, hoje Casa da Memória Italiana, a pedido das tias.

– Sempre fui apaixonada por aquela casa!

Seu primeiro emprego foi em um escritório de contabilidade que ficava no segundo andar do Diederichsen, aos 17 anos.

– Eu fui lá e disse que queria aprender. Ia no colégio de manhã e à tarde trabalhava. Meu pai soube e ficou bravo: ‘Quero você estudando!’. Mas eu continuei. Fazia as duas coisas. E não parei mais de trabalhar.

Fez magistério e quis cursar Psicologia, mas o curso na USP era integral e as finanças não possibilitavam. Pensou em Direito também, mas os cursos eram caros. Foi para Pedagogia e diz que se encontrou. Quando se casou, porém, deixou a faculdade e foi morar em São Paulo, onde o marido já estava com a carreira consolidada.

– Achei que não iria voltar mais, mas voltamos um ano depois, pela saúde do meu sogro.

Construíram a vida por aqui. O primeiro filho nasceu em 1976, depois veio o segundo e ela decidiu exercer o papel de mãe com exclusividade.

Trabalhou em loja de decoração, de móveis e no Hotel Stream Palace.

– Tudo é experiência. Tudo te ensina.

Em janeiro de 1997, veio o convite para atuar como gerente artística do Theatro Pedro II e aceitou, ciente do desafio. O espaço havia acabado de ser reinaugurado, após o incêndio de 1980, que destruiu grande parte do patrimônio.

– Não dava para acreditar… eu não tinha nem coragem de passar lá na frente.  Parte da minha história estava ali dentro.

Esteve na reinauguração, em 1996, e, depois, começou a trabalhar ali. Foram idas e vindas, com as trocas de governo e gestão.

– Para mim, o Theatro tem sempre cara de novo, de recuperado. A qualidade, a importância que ele tem… Cada vez que eu ouvia um elogio, tudo valia a pena.

Entre quem atua por ali, quando se fala em memórias e afetos, a primeira indicação é a Regina: ‘Já falou com ela? Tem muita história para contar!’.

No começo da conversa, Regina fez uma ressalva: “A memória não é mais a mesma!”. E a gente fica se perguntando, então: é possível lembrança mais nítida?

 – Memória é manter a ligação afetiva com o lugar. Me faz bem falar da minha história.

Conta que a última vez que visitou o Diederichsen foi mais de quatro anos atrás, quando as portas ainda estavam abertas e o alfaiate Alemão, o mais antigo da cidade ainda em ação, continuava na sala que foi sua por quase 60 anos.  

Em 2016, a Santa Casa, responsável pelo prédio, anunciou que o local seria transformado em um Centro Cultural. Os moradores e comerciantes que ocupavam o Diederichsen deixaram o espaço e o prédio ainda segue em obras.

– Agora, o vínculo que mantenho é a lembrança, a saudade do lugar. Não sinto que preciso voltar lá para reativar a memória.

As voltas, afinal, deixam o coração apertado.

– Foram muitas famílias que viveram ali e tiveram ali suas histórias de muitos anos. E agora? O que vai ser?

Compartilha sua trajetória, que é também patrimônio, e vai ajudando a preservar o material por meio da memória, do afeto.

– É tanta modificação que você acaba achando que aquilo é estranho a você. Casas transformadas em lojas, terrenos em prédios.

Procura, então, se apegar ao que o tempo não levou.

– Se você não tiver saudade, o que vai contar? A ligação que a gente deve ter com um bem material desse tipo, uma construção, é manter a sua história. Desde que você tenha vivido alguma coisa com aquele lugar, é a sua história que está ali.

Em frente ao Diederichsen, Regina posa para a foto. O História do Dia solicitou à Santa Casa a entrada no local, mas o pedido não foi autorizado. A justificativa é que as obras tornam o espaço inseguro. As memórias de Regina – ainda bem – estão guardadas.

História do patrimônio

O Edifício Diederichsen foi inaugurado em 1936, como um empreendimento de Antônio Diederichsen, filho de alemães que se tornou banqueiro e grande investidor no Brasil. Em Ribeirão Preto, ele investiu em diversas áreas, proprietário de empreendimentos como fundição, oficina mecânica e serraria. Ele também foi um dos empresários que impulsionaram a chegada da primeira concessionária à cidade. A inauguração do Diederichsen foi um marco, junto à chegada de outros grandes prédios de Ribeirão. Vinculado à arquitetura art déco, o edifício foi o primeiro arranha-céu da cidade. Com seis pavimentos além do térreo, desde seu início teve uso misto, abrigando lojas, serviços, cinema, hotel, Café Única e o Pinguim. Em abril de 1939, o jornal Folha de São Paulo falou sobre o suntuoso empreendimento: “No coração da cidade, ergue-se o imponente Edifício Diederichsen de seis pavimentos, com frente de 140 metros para as ruas General Osório, Alvares Cabral e São Sebastião. Nesse edifício, na parte térrea, está instalado o Cine São Paulo, com capacidade para 1.200 pessoas, o bar e restaurante Pingüim, e vários estabelecimentos (II lojas): pharmacia, barbeiro, café (Única), casas de moda, etc. Pelos vários andares (l°e 2 o ) multiplicam-se escritório s(420 salas) commerciais, médicos, de advocacia, etc, afora 46 apparíamentos no 3 o e 4 o andares, sendo o 5 o pavimento occupado pelo Luxuoso Grande Hotel Gallucci, optimamente montado, com esmerado serviço, o melhor hotel do interior do listado “. O processo para seu tombamento foi aberto em 1998, sendo concedido pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico do estado de São Paulo (CONDEPHAAT) em 2005.

Saiba mais sobre o Edifício e o processo de tombamento:
http://www.infopatrimonio.org/wp-content/uploads/2018/02/COND_037922_1998.pdf
http://condephaat.sp.gov.br/benstombados/edificio-diederichsen/

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2 Comentários

  1. Meire Eleni Cabral Archangelo Pereira

    Que gostoso ler as memórias de Regina sobre o centro de Ribeirão, o espaço do teatro…
    Desde qdo conheci as Lojas Americanas dificil o dia que vou em Ribeirão e não passo por lá. Tenho esse encantamento pelo local, na época adorei a escada rolante tbm. Gosto de olhar o teatro e até o Pinguim traz recordações com a família, feira do livro e por ai vai.

  2. Edgard Castro

    Parabéns Daniela pelo belíssimo trabalho sobre o Edifício Dirderichsen. Melhor ainda, comentado pela elegante Regina Scatena. Uma história bem contada, cheia de afeto, como era naqueles tempos. Sucesso para o “Patrimônio em Memórias”.

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