Esta história faz parte do projeto “Patrimônio em Memórias” realizado com apoio do Proac LAB, programa da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo.
Texto e fotos: Daniela Penha
Ilustração de Luciano Filho, exclusivamente para o projeto “Patrimônio em Memórias”
Pelas palavras de Nainôra até mesmo quem não conhece a Catedral de São Sebastião, consegue (re)criar na imaginação seus vitrais e detalhes. Ela narra cada pedacinho do patrimônio escolhendo as melhores palavras. Coloca vida em cada vírgula, afeto em cada pausa.
– A Catedral é um ponto referencial da cidade. A alma de Ribeirão Preto.
A entrevista por videoconferência se torna um tour e a gente vai logo reforçando a torcida para que os encontros presenciais sejam novamente possíveis. Percorrer a igreja com a orientação da professora seria uma aula de história e sociedade!
– A pintura da capela do Santíssimo, o céu, as nuvens laterais evocam toda uma era, com essa ligação do sagrado.
Bem por isso, na cidade já se sabe: se o assunto é catedral, a professora doutora em História é partícipe. Nainôra Maria Barbosa de Freitas teceu com a Catedral de Ribeirão Preto um laço que perpassa a construção e a imensidão que ela, por si só, já representa.
– Quantas pessoas passaram naquele piso gasto e centenário para rezar, pedir, agradecer por saúde, dinheiro, amor. Por aquilo que as move. Isso me emociona muito!
Protege o patrimônio material em suas aulas e ações, nos projetos que desenvolve, nas iniciativas das quais participa. Em 2015, quando cerca de mil pessoas realizaram um abraço em todo entorno da Catedral, reivindicando cuidado, Nainôra estava lá, como uma das organizadoras.
Foi um ato de protesto contra a criação de terminais de ônibus em frente à igreja pela prefeitura da cidade. Uma das muitas controvérsias sobre a preservação do patrimônio. A Catedral, nessa época, precisava de restaurações urgentes e uma das causas apontadas em laudo para suas rachaduras é o intenso tráfego no local.
– Ela começou a ser restaurada. Foi feita a primeira parte, mas é um projeto longo, há muitas etapas pela frente.
Protege também o patrimônio imaterial, com suas memórias, relatos e afetos. A Catedral resguarda os costumes e a história de toda uma comunidade que começou ali, no Centro de Ribeirão Preto.
– Ela se tornou um referencial. Dali, saíam as festas, as procissões, as quermesses. Patrimônio é falar de gente e, por isso, a Catedral pulsa vida. Há pessoas que vão à Catedral no horário de almoço para rezar ou só para ficar em paz. É um lugar de refúgio, além da fé. Sem falar nos grupos de mulheres que se reúnem para trocar as histórias delas, os projetos, as ações sociais. É um patrimônio vivo!
Uma história do povo
Esse encantamento surgiu rápido, bem amor à primeira visita.
Nainôra é de Patrocínio Paulista, cursou História da Unesp Franca, onde também fez seu Mestrado e Doutorado. Se mudou para Ribeirão Preto em 1988, para dar aulas na Faculdade Barão de Mauá, e se tornou ribeirão-pretana de coração.
– Eu cheguei à Catedral em um dia que bateu sol nos vitrais. Olhei aquilo e pensei: isso é bonito demais!
De família católica, ela também frequentava a igreja e, então, tinha que redobrar a concentração para não perder o fio da missa enquanto admirava as pinturas, os mármores, os detalhes.
– Eu olhava a cúpula de Nicolau Biagini, que o bispo pagou a mais de tão feliz que ficou com o trabalho, e ficava pensando: ‘Como será que foi para pintar? Como eram as escadas? Quem doava serviços? Quem doava galinhas? Fazia quermesses? Além dos cafeicultores, muitas pessoas participaram como podiam…
No Mestrado havia estudado as igrejas na era colonial. No Doutorado, então, decidiu entender a história da Diocese de Ribeirão Preto.
– Batatais queria ser sede da Diocese e já tinha tudo pronto. Por que Ribeirão?
Começou a estudar e percebeu que a história da Diocese se misturava com a construção da Catedral. E, então, além de admiradora, passou a estudar todos os detalhes que tanto enchiam os olhos e cada pedacinho de trajetória daqueles pisos.
– Em 1908 nasce a Diocese. A matriz começa a ser construída em 1904, com a pedra fundamental. O fato é que em 1909 chega o primeiro bispo, Dom Alberto José Gonçalves, e não pode tomar posse da Catedral, porque as paredes estavam sendo levantadas. Ele, então, levanta a Catedral.
As histórias são muitas, são parte.
– Os batizados, as festas, tudo era ali. Os velórios eram em casa, mas também passavam por ali. E há bispos, um padre e um casal de doadores enterrados na Catedral. É uma história das pessoas.
Em 1918, a construção foi finalizada e teve início a reforma da parte interna, com toda a decoração. Nainôra conta a curiosa carta que o bispo Dom Alberto trocou com o artista Benedito Calixto, que pintou as seis telas que retratam a vida de São Sebastião, expostas no altar. Há apenas a correspondência enviada pelo bispo, questionando o artista: “Se eu morrer alguém vai honrar o pagamento dessas obras. E se você morrer?”. A resposta do artista não foi encontrada.
– A Catedral está lá pelas famílias que ali se casaram, batizaram seus filhos e netos; pela memória das festas e costumes e pela memória arquitetônica da cidade. É um patrimônio dos ribeirão-pretanos, além dos católicos.
Curiosidades e encantamento
Dizem por aí que quando as telas de Benedito Calixto chegaram de trem pela Mogiana foi um festejo só. Enormes, elas vieram aos poucos. A cada chegada, uma aglomeração de curiosos querendo subir as obras até a Catedral e ver o que havia dentro do embrulho.
Os vitrais coloridos e tão cheios de detalhes? A historiadora conta o inusitado:
– Eram uma forma de evangelizar para quem não sabia ler.
Foram fabricados pela Casa Conrado, ela explica. Uma loja que confeccionava vitrais por todo o estado de São Paulo, inclusive em muitos dos casarões das famílias.
A chamada porta de bronze da entrada?
– Não é de bronze! Foi inaugurada na década de 50 e conta a história da Diocese por meio dos seus escudos.
No altar, a Santa Ceia cuja execução tem vários “pais”.
– O projeto é do pai do Palocci (ex-prefeito de Ribeirão), mas a execução é do José Carvana, com mármore da Marmoaria Belino.
E o tour vai sendo desenhado, a cada frase, a cada história que Nainôra narra com tanto carinho. Quando um amigo visita Ribeirão Preto tem programação certa. Não parte sem conhecer os prédios históricos, com explicações e detalhes da historiadora.
Em 2011 lançou o livro “Rivi Nigri: a criação da diocese na nova Eldorado”, com a história da Diocese e da Catedral, que se misturam.
Paixão pela história
Nainôra foi se tornando ribeirão-pretana à medida em que o coração foi sendo tomado pelas histórias, esquinas, pessoas.
– Eu sou uma pessoa do Centro, da baixada, de frequentar os butecos, tomar café na Única.
Ela morou na região central por alguns anos, depois passou pela Vila Tibério e hoje mora do Jardim Paulista: bairros cheios de história!
– Nos últimos anos Ribeirão verticalizou muito, e muito rápido. Me entristece como a Vila foi perdendo sua característica. Quando a Barão foi para o Jardim Paulista, não havia nada. Agora, tem muitos prédios.
Cuidar da memória é pensar no amanhã. Ela enfatiza.
– É preciso investir em programas de educação patrimonial nas escolas. Isso tudo nos remete a uma questão: patrimônio é olhar para o futuro. Quais referências culturais vamos deixar para as próximas gerações? É um papel do cidadão aliado ao poder público. Tem que ser um conjunto de ações. Ribeirão não tem políticas públicas de curto, médio e longo prazo para patrimônio cultural.
A vontade de ser historiadora surgiu na escola inspirada por uma professora que fazia pesquisas e contava a história de sua pequena cidade, Patrocínio Paulista. Há mais de três décadas, professora Nainôra busca despertar nos alunos a importância de se preservar o que é nosso, de todos e todas.
– A grande questão de trabalhar com memórias é procurar pensar o que está por trás dos patrimônios materiais. São as identidades culturais das pessoas. Aí vem o afeto, que é aquilo que te afeta. E aí você cuida ou não. Se você não se identifica, como vai cuidar?
Combinamos um tour completo e cheio de narrativas quando os encontros voltarem a ser possíveis. A historiadora segue, defendendo o patrimônio que é parte de si e de nós.
Quantos abraços serão necessários para guardar nossa Catedral?
História do patrimônio:
A primeira capela de Ribeirão Preto ficava localizada na Praça XV. Em 1905, com a reurbanização desta área e a crescente população da cidade, ela foi demolida para a construção de um templo maior. Neste ano, então, começa a ser construída a Catedral de Ribeirão Preto. Em 1908, é inaugurada a Diocese de Ribeirão Preto e, então, torna-se ainda mais urgente a construção de uma Catedral para a cidade. O primeiro bispo, Dom Alberto José Gonçalves, assume em 1909 e ajuda a alavancar a construção. Em 1918, a construção foi finalizada, mas ainda faltava a decoração da parte interna. A Catedral continuou a receber altares até a década de 60. Em 2009, a Catedral foi tombada pelo Conselho de Preservação do Patrimônio Artístico e Cultural de Ribeirão Preto (Conpacc) e, em 2014, houve o tombamento pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat).
Conheça a pesquisa de Nainôra, com mais histórias sobre a Catedral e a Diocese AQUI.
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Gostei de ler sobre a história da Catedral de Ribeirão, feliz por minha amiga Nainora, guardiã perfeita,dedicada e capaz de zelar com muito empenho e delicadeza.
Nainôra, importantíssimo seu trabalho e das outras cuidadoras de memórias singulares de pessoas e lugares da cidade. Percebo a dedicação e cuidado afetivo com que tratam das histórias que são muitas. Meus avós maternos Luiza de Oliveira Andrade e João Manoel de Andrade se casaram na Catedral em12/05/1912. Na época as paredes estavam até a metade. Assim nos contaram.Parabéns a todas.