Há 27 anos, Eva faz receitas com afeto como cozinheira da Associação Gewo-Haus

15 julho 2020 | Gente que alimenta

 

Texto e fotos: Daniela Penha

Ilustração: Cordeiro de Sá 

 

Naquele dia, teve macarrão com queijo no almoço. Uma receita nova na cozinha da instituição. Tarcísio sente a boca encher de água. Os oito anos em que frequentou a Associação São Francisco de Assis Gewo-Haus deixaram saudade.

Sorte que, sempre que o coração aperta, pode saná-la um pouquinho.

Sua mãe, a cozinheira que preparou o memorável macarrão, continua fazendo receitas com afeto em casa e na instituição. Após quase três décadas de trabalho ininterrupto, Eva é parte da associação em via de vai e volta. A Gewo-Haus também faz parte de sua trajetória.

– A minha vida mudou depois que eu entrei aqui…

Até então, tudo o que sabia de cozinha era em casa, preparando as refeições de todo dia. Bem por isso, quando as irmãs franciscanas disseram que estava contratada e poderia começar no mesmo instante, ela sentiu um frio na barriga.

Hoje, é lembrada pelo carinho que coloca em cada bolo de cenoura, sopa com legumes batidos, arroz e feijão de cada dia, frango assado, lasanha, muita salada e o tal macarrão com queijo. A criatividade é o principal ingrediente em sua cozinha. Nada se perde, tudo se transforma.

– Tem que ser criativa o tempo todo! A gente recebe muitos legumes, abobrinha, cenoura. Precisa fazer receitas que as crianças gostem!

A Gewo Haus, na Vila Virgínia, é uma das 52 instituições sociais e hospitais beneficiados pelo programa Mesa Brasil Sesc Ribeirão com doações de alimentos.

A entidade, que completou 39 anos de atuação neste mês, oferece acolhimento a 70 crianças e adolescentes em vulnerabilidade social, de 6 a 15 anos, no contraturno escolar, com aulas de informática, dança, artesanato, marcenaria, teatro, esporte entre outros aprendizados. Também atende 92 adolescentes, de 12 a 18 anos, que estão cumprindo medidas socioeducativas em liberdade assistida.

O objetivo do acolhimento realizado há quase quatro décadas é oferecer caminhos, explica Nice Marinho, analista administrativa da instituição:

– É um trabalho de construção. Queremos que eles compreendam que podem ter mais possibilidades de estudos, conhecimentos, trabalhos onde estão e olhem a vida de uma forma melhor.

A Gewo-Haus está cadastrada no Mesa Brasil Sesc Ribeirão desde 2014. Em seis anos, a instituição já recebeu 303 doações do programa, com 16,450 toneladas de alimentos. Só em 2020 foram 1,8 toneladas!

Eva Benício Machado, 51 anos, é quem faz tudo se transformar em nutrição para a criançada. E mais: não perde uma oficina do programa!

– Aprendi muito. Aproveitar os talos, as cascas. A gente nunca sabe de tudo, sempre pode aprender mais. Faço questão de ir porque a cada ano é uma coisa nova que eu aprendo.

Agora, com a pandemia, as crianças e adolescentes não estão tendo atividades presenciais. As famílias, porém, continuam sendo assistidas. Recebem kits com alimentos que Eva organiza com o mesmo carinho que coloca nas panelas. De abril até a semana passada a entidade já havia recebido 11 doações do Mesa Brasil, com 1,4 toneladas de alimentos, além de itens de higiene pessoal e material de limpeza.

– Fica um silêncio. Nunca fiquei tanto tempo assim sem cozinhar para eles. É a primeira vez que isso acontece. Gravei um vídeo dizendo que estou com saudade…

O que tem na panela da cozinheira?

Gewo Haus Ribeirão Preto

Eva nasceu em uma fazenda no interior de Goiás. Seu pai era agricultor e sua mãe dona de casa. Para que nada faltasse aos 10 filhos, todo mundo tinha que participar. Ela mesma começou por volta dos 10 anos. Ajudava os pais, fazia faxina em outras casas.

Não consegue precisar o tempo. Acredita que tinha por volta dos cinco anos quando seus pais vieram morar em Ribeirão Preto. Pouco depois, tiveram que retornar para o Goiás. Guardou as lembranças dos passeios no bosque dando comida para os macacos e da maria fumaça na praça.

– Nunca poderia imaginar que eu iria voltar! Por isso me apaixonei tanto por Ribeirão. Estou construindo uma vida aqui. E repetindo um pouco a história da minha mãe, que também viveu nessa cidade.

Por volta dos 17 anos, começou a trabalhar como babá. Conheceu seu marido, começaram o namoro e ele veio para Ribeirão a trabalho. Quando se casaram, em 1991, ela fincou raízes por aqui. Estava com 22 anos.

Durante dois anos trabalhou como doméstica. Uma vizinha contou que a Gewo-Haus estava precisando de cozinheira. Eva decidiu tentar.

– Tinha outras pessoas na frente, que eram mais velhas do que eu. Saí sem esperança de conseguir a vaga. Mas depois de uns dias me chamaram para vir conversar.

O que tem na panela da cozinheira? Uma porção farta de garra? Tem, sim!

Gewo Haus Ribeirão Preto

A jornada começa às 7h30. Chega e prepara o café da criançada, que é servido às 8h. Quando tem bolo, já deixa pronto na tarde de véspera.

Depois que o café termina, começa a preparar o almoço, servido às 11h. Faz seu intervalo e retoma às 13h30. Às 14h15 tem o lanche para a turma da tarde e às 15h15 o café dos funcionários. Depois é organizar tudo para retomar no outro dia.

Tudo o que prepara é fresquinho. Não gosta de nada congelado. Todo dia, é feijão chiando na pressão. Salada é prato querido por ali:

– Eu falo: as crianças estão de parabéns!

A cozinheira ajuda, claro. Sabe os gostos e adapta as receitas para que os pequenos comam de tudo. A sopa, por exemplo, leva legumes batidos, para que a criançada coma sem perceber até o que pensa não gostar.

– Eu tenho meus segredinhos! Dou uma embutida nas coisas que elas não comem.

Também faz sucos com combinações diferentes: cenoura e laranja, casca do abacaxi cozida – aprendeu em uma oficina do Mesa Brasil, faz questão de ressaltar. A casca da banana vai para o lixo? Não, não! Se transforma em nutritiva farofa!

– São algumas das receitas que eu aprendi nas oficinas! Ajuda muito!

Prato vazio é troféu de cozinheira, ela bem sabe.

– É maravilhoso ver os meninos comendo com aquela boquinha boa e perguntando: pode repetir? É a parte mais gratificante.

A comida de Eva, para muitas das crianças e adolescentes atendidos, pode ser a mais completa refeição do dia. Ela, então, redobra o carinho.

– Além de amor, cozinhar para eles é terapia. Quando estou cozinhando, esqueço dos meus problemas e quero fazer o melhor possível.

O que tem na panela da cozinheira? Criatividade como tempero? Tem também!

Gewo Haus Ribeirão Preto

Tarcísio, filho de Eva, tem 23 anos. Nasceu quando a mãe já somava quatro anos de trabalho na instituição, cresceu por ali e conta:

– Eu convivo aqui desde que estava na barriga dela. Cresci aqui dentro.

A família mora no bairro, perto do trabalho e da escola onde ele estudava. Eva, então, pôde deixar o filho sempre debaixo das asas.

– Fui muito abençoada! Ele ficava comigo o tempo todo. Não precisei me preocupar com isso, como muitas mães se preocupam.

Quando ele completou quatro anos, a idade para entrar na Gewo-Haus, passou a ser um dos alunos acolhidos. Relembra das aulas de inglês da professora Regina, das viagens, dos amigos, dos valores que aprendeu e da comida da mãe, claro.

– Todo mundo dizia que eu era sortudo porque podia comer aqui e em casa também.

Não é o único, como Eva diz, toda-toda:

– Eu sempre encontro meninos e meninas que passaram por aqui e já estão adultos. Eles dizem: ‘Eva, aprendi aquela receita com você e faço até hoje!’. É muito bom!

Ela estudou até o sexto ano. A vida foi tomando outros rumos e precisou parar. Fala, com orgulho, que Tarcísio está fazendo faculdade de Turismo na Universidade Federal do Rio de Janeiro. E também ressalta:

– Nunca é tarde para aprender, né? Tenho vontade de voltar e oportunidade não falta!

Eva já bem disse lá em cima: a gente nunca aprende tudo! Nas panelas de sua vida, há sempre espaço para receitas novas. Nos corredores coloridos da Gewo-Haus estão as memórias de sua trajetória, de Tarcísio e de centenas de crianças que tiveram a história transformada com carinho e acolhimento. Mãe e filho se abraçam no pátio, relembram, cada qual em suas memórias, um bom momento vivido ali.

– Aqui, eu pude expandir meus horizontes. Fiz amizades, aprendi a me comunicar, inglês, artesanato, violão. Abriu meus caminhos.

Tarcísio é quem diz.

– Mudou minha vida. E é muito bom encontrar os meninos que passaram por aqui e hoje estão formados, trabalhando, com suas famílias.

Eva complementa.

O que tem na panela da cozinheira? Muito amor, é claro, não pode falar!

 

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1 Comentário

  1. Paula Benicio

    Parabéns Eva pela linda historia da sua vida como conzinheira, eu imagino o quanto você coloca amor na comida que prepara! Você e Tarcisio sâo guerreiros, vocês merece essa linda homenagem, da historia de vocês! Obrigada por compartilhar comigo sua historia! Fiquei feliz por vocês!

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