Esta história faz parte do projeto “Patrimônio em Memórias” realizado com apoio do Proac LAB, programa da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo.
Texto: Daniela Penha
Fotos: Giovanna Grepi
Ilustração de Luciano Filho, exclusivamente para o projeto “Patrimônio em Memórias”
– A USP abriu o mundo para uma menina do interior. O que eu não conheço do mundo, pessoalmente, conheci através dos professores. Será que eu fui uma sortuda?
O campus da USP Ribeirão Preto está situado em uma área de 5,86 milhões de metros quadrados metros, conta com nove unidades de ensino e mais de mil professores. Rose tem um banco de dados com o nome, a especialidade e a disponibilidade em conceder entrevistas para a imprensa de quase todos eles.
A primeira planilha foi feita à mão. Quando entrou na Universidade de São Paulo como funcionária, 40 anos atrás, os computadores eram uma conversa que parecia distante. Ela fez parte de todo processo de digitalização. Viu as primeiras máquinas chegarem, ainda causando assombro. Assistiu a universidade crescer, se expandir a cada ano.
– Quando eu entrei a gente tinha 200 professores!
Um pesquisador para falar sobre dengue? Ela sabe quem! Professora para tirar dúvidas geográficas? Ela indica também! Ah, e quem é especialista em primeira infância? Rose passa uma lista, com descrições de cada profissional em poucos minutos. Como eu sei de tudo isso com tanta certeza? Nos meus anos de redação perdi as contas das vezes em que recorri à Rose, sempre tão disposta a divulgar o que a USP faz de bom – e a ajudar jornalistas, por vezes, desesperados para fechar a reportagem do dia.
– Divulgar o que a universidade faz é dar satisfação do dinheiro público que a gente recebe. É importante não só para alfabetizar a população cientificamente, mas principalmente para dar uma satisfação para quem nos mantem.
Rose é jornalista por formação. Na USP, já desempenhou uma lista extensa de funções, que lhe deram todo esse arquivo de quem trabalha ao lado.
Quando entrou, em 1981, ainda não existiam três grandes faculdades do campus. Viu nascer a FEA (Faculdade de Economia e Administração), a Faculdade de Educação Física e a Faculdade de Direito. Ajudou na instalação do Departamento de Música, pelo qual nutre uma dose a mais de paixão. Foi pilar de implementação da Rádio USP, veículo primordial para, além da boa música nacional, a divulgação do que acontece dentro do campus.
E essa lista está bem resumida.
– O campus é minha segunda casa. Eu tenho começado a me preparar para, em um futuro, parar de trabalhar. Mas não me vejo longe de lá ainda.
A chegada
O prédio da Medicina, marca histórica do campus, fez a recepção da jovem Rose, que acabara de chegar da pequena Porto Ferreira.
– Ali é um lugar muito marcante. A primeira vez que cheguei me deparei com aquele prédio, com as escadarias… não acreditava que estava saindo de uma cidadezinha e estava ali.
Rose nasceu em Porto Ferreira, cidade que hoje tem pouco mais de 56 mil habitantes. Os pais tinham uma mercearia e, como público fiel, alguns jornalistas que passavam para degustar os tradicionais lanches, os doces caseiros.
– Eles contavam suas histórias e eu fui ficando apaixonada. Achava que fazer jornalismo era colocar um pé no mundo. E meu sonho era sair de Porto Ferreira.
Começou a trabalhar na adolescência. Em uma empresa de tecelagem, conheceu uma senhora que era funcionária da Faculdade de Medicina e lhe recomendou que, caso fosse morar em Ribeirão Preto, procurasse a USP, que estava com processo seletivo aberto.
Quando começou a faculdade de jornalismo na Unaerp, ia e voltava de ônibus. Mas o trajeto foi ficando cansativo. Passou a morar em Ribeirão e a trabalhar em uma empresa de cadastro de clientes. Então, se lembrou daquela senhora. Ligou na USP e soube que um novo processo teria início, para a tesouraria da pós-graduação da Medicina.
– Tinha muita gente para a prova!
Foi chamada em abril de 1981, aos 18 anos. Uma porta que, até hoje, segue aberta.
– Até então, eu nunca tinha ouvido falar de pesquisa, pós-graduação. De repente, vim para um mundo desses, convivendo com pessoas dispostas a ensinar. Isso fez muita diferença na minha vida.
Sempre em movimento
A função dos “novatos” era cuidar do arquivo. Rose se deparou com mesas de três metros lotadas de papeis esperando pelo arquivamento. As boas-vindas não animaram muito a jovem, como era de se esperar.
Todos os dias, um professor, chamado Maurício, ia até a sala do arquivo e se sentava na ponta da mesa para ler o jornal.
– Ele não abria a boca. Eu achava até que ele não ouvia.
Mas o professor estava de ouvidos alertas quando Rose reclamou com uma colega: ‘Vou ficar só aqui arquivando e não vou aprender nada’. A resposta, então, veio certeira: ‘Tire proveito sempre do que está na sua frente. Leia tudo o que está arquivando’.
Ela seguiu o conselho em cada sílaba.
– Eu demorei para terminar porque li tudo. Quando acabei sabia exatamente a rotina e o que cada um fazia. Eu podia substituir os funcionários, porque conhecia as funções. E até hoje tenho facilidade em indicar especialistas por isso.
Rose, então, foi se tornando “arquivo bem vivo” da pós-graduação. E a próxima responsabilidade foi fazer os relatórios Capes, tarefa de grande responsabilidade.
– Começou a vir para eu ajudar porque eu conhecia todo aquele universo. Quando o relatório veio para minha mão, passei a conhecer também a estrutura administrativa como um todo.
Quando a Capes mandou um microcomputador para a pós-graduação iniciar sua digitalização, os rumores corriam soltos: ‘Isso daí vai tirar nosso emprego! Não é para mexer nisso!’. Mas Rose não se amedrontou. Fez um curso para aprender e depois compartilhou com o seu setor, e também com outros, aquilo que aprendeu. Viajou para Brasília, em treinamentos e treinou o pessoal de outras unidades.
– Eu recebia cartinhas de agradecimento das outras faculdades.
Ficou na Faculdade de Medicina até 1991.
– Eles foram responsáveis pela minha mudança de vida, por me transformar no que sou hoje.
Mas é sempre preciso alçar novos voos, ela bem sabe. Recebeu um convite para assumir o cargo de chefe da pós-graduação na Faculdade de Odontologia, que passava por uma reformulação completa na época. Depois, assumiu a assistência acadêmica.
Ficou seis anos na Odontologia, mas não se encaixou por ali. Por questões internas, passou a se sentir infeliz com o trabalho. Durou pouco – ainda bem.
Rita, colega de profissão, avisou que iria abrir uma vaga na comunicação da Prefeitura do campus. Rose pediu uma transferência e partiu, em 1997.
Por lá, novo recomeço. Foi logo tratando de informatizar os processos, digitalizar a rotina. As notícias, até então, eram enviadas para os jornais em envelopes, em mãos. Foi acompanhando e participando das mudanças, a cada nova gestão.
Em 2001, recebeu uma função-desafio. Deveria implementar a rádio USP, cujo processo estava atravancado havia mais de 10 anos. Foi até para Brasília resolver as burocracias para a concessão. Em 2004, tudo estava instalado. As notícias do campus começaram a ir ao ar. E aí, foi preciso plantar a sementinha da importância da divulgação.
– No começo era muito difícil as pessoas atenderem nossos pedidos. Não havia a cultura da divulgação. Saíam sempre os mesmos professores.
Acabou se envolvendo também na assessoria de imprensa.
– Essa necessidade de divulgação fica ainda mais evidente agora, nesse contexto de pandemia. A Ciência foi atacada e, em muitos casos, por desconhecimento. Não basta só avançar, evoluir com a Ciência. É preciso divulgar.
Afeto que só aumenta
Hoje, Rose é editora da rádio e do jornal da USP em Ribeirão Preto, responsável por 12 programas semanais, focados na divulgação do campus.
Depois de quatro décadas, continua apaixonada, defensora da Universidade Pública.
– Eu ainda me emociono. Quando vejo uma matéria bem feita sobre a USP, conquistando repercussão, fico emocionada, independente de qual área seja.
Continua descobrindo novos espaços, novos atores no imenso campus. Faz questão de sempre mudar a rota de carro que a leva até a rádio. Um dia, entra pela avenida do café. No outro, vai pela Bandeirantes. Vez em quando, passa pelo Hospital das Clínicas.
– Senão, você fica se sentindo fora do campus. Dá a impressão de que não é parte. Eu consigo ver o campus como único. Somos todos USP.
Em uma dessas andanças, viu uma horta diferente. Foi logo pedindo para a estagiária de jornalismo checar o que era o experimento, na Faculdade de Farmácia.
– Gosto muito de observar o campus. Jornalismo é observação, é saber o que está acontecendo ao seu redor.
Em 2006, ajudou a colocar a história da USP em livro, ideia do professor José Aparecido. Esteve na organização da obra “Memórias de Monte Alegre”, escrita pelo jornalista Rubens Zaidan, com toda a história da universidade que nasceu onde antes era uma imensa fazenda de café.
– Esses prédios são feitos de pessoas, sentimentos. E muitas pessoas ficam escondidas.
Quando recebe visitas de fora, adivinhe? Leva para passear na USP.
– Em frente à rádio tem uma fila de ipês brancos, não canso de admirar. O lago, contemplar no final de tarde. O pátio interno da Faculdade de Medicina, onde tem o chafariz, é outro lugar muito gostoso de ver. A floresta, os pássaros, os diferentes animais…
Vai enumerando a lista sem fim de afetos pelo patrimônio. O orgulho de fazer parte salta em cada palavra.
– É uma instituição muito importante. É só olhar situações diversas, como a pandemia. A busca por soluções acaba sempre passando pela USP e o campus de Ribeirão é parte disso.
O que resulta de tanta história?
– O que fica disso tudo são as pessoas que passaram pela minha vida: professores, colegas, muita gente querida. Esses prédios são feitos de pessoas…
Será que fui sortuda? Ela perguntou lá em cima. Quase dá para ouvir a Universidade respondendo: será que os sortudos fomos nós?
História do patrimônio:
Na enorme área, composta de muito verde, onde fica a USP Ribeirão Preto existiu a Fazenda Monte Alegre, de João Franco, com origens em 1874. Em 1890, Franco vendeu a fazenda para o imigrante alemão Francisco Schimidt. Há relatos de que a fazenda foi o primeiro lugar de Ribeirão a receber energia elétrica. No espaço, eram produzidas toneladas de café, com a máxima tecnologia que havia na época. Schimidt faleceu em 1924 e a administração dos negócios ficou para seu filho. Em 1940, o governo desapropriou a fazenda, que já havia sido vendida para outro proprietário, e foi criada a Escola Prática de Agricultura, que teve sua construção iniciada em 1942 e que foi desativada em 1948. A Faculdade de Medicina começou a funcionar nas mesmas instalações em 1952. Em 1994, diversos prédios que compõem o campus da USP como o Museu Municipal, a o prédio central, o ginásio de esportes, as residências de professores e funcionários, o prédio principal da Faculdade de Filosofia, foram tombados pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo).
Entenda mais sobre o tombamento: http://condephaat.sp.gov.br/benstombados/sistema-viario-area-verde-e-cj-arquitetonico-da-antiga-fazenda-monte-alegre/#
Conheça mais sobre a USP: https://jornal.usp.br/home-ribeiraopreto/
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Que texto lindo! Dá pra ouvir a Rose falando cada aspas! Parabéns pelo trabalho!