Vale a pena ler de novo! História publicada pela primeira vez em 11 de setembro de 2017!
*A sapataria do Noccioli agora funciona na rua Castro Alves, entre a Martinico Prado e Luiz da Cunha. Ele continua trabalhando, com toda sua energia.
Seu Zé liga para o moço que vai fazer a nova placa da sapataria, na Vila Tibério e avisa: “Viu, vai precisar ser maior. Mudar umas coisas. Depois a gente vê, então”.
Decidiu que, depois de 55 anos de trabalho, aos 68 de idade, vai mudar o ritmo. Trabalhar quatro vezes na semana, não cinco.
– Nunca tirei um dia de férias!
Não demora, porém, para ir desmantelando o plano.
– Tem que ir pescar, porque se ficar em casa fico louco. Ih, mas os freguês não deixa, não. Eles não deixa eu parar…
José Carlos Noccioli teve um único ofício na vida.
Começou na sapataria aos 13 anos e nunca mais parou. Entrou como engraxate e lembra que o primeiro sapato que engraxou foi o do pai do patrão.
Vinte anos depois, comprou a sapataria do chefe, que pensava em fechar as portas.
Diz que, além da esposa que socorria nos tempos mais corridos, nunca teve um ajudante, apesar da dor nas costas que fica mais forte com a idade.
Criou os três filhos, comprou a casinha própria, ajudou seus meninos a comprarem também, é o vó coruja dos quatro netos: toda uma vida feita com a arte de consertar sapatos.
Consertar e guardar, ele bem frisa.
– Nesse tempo todo, eu nunca perdi um sapato! Tem clientes que eu anoto o nome, mas a maioria eu nem anoto. Outro dia veio uma moça buscar um sapato depois de seis meses. Tava aí, guardado numa sacolinha.
Fala, todo orgulhoso, que grande parte da clientela sai das cidades da região. E já consertou sapatos de cinco gerações da mesma família.
– Vira amigo, família!
Seu Zé não conhece o mar e, apaixonado por pescaria, nunca pegou peixe em rio que não fosse na região.
Tem um tempo, parou de trabalhar de sábado e instituiu o dia da pescaria, que é quase sempre no clube.
Garante, porém, que agora realiza o sonho de conhecer o Mato Grosso. “Nem que não seja para pescar, só para olhar os bichos que tem lá”, ele garante que vai.
Trabalhando quatro dias na semana, sobra uma folguinha.
– Ih, mas eu gosto de tá aqui na sapataria. Em casa eu não gosto, não.
Talvez, fique para o feriado.
– Nós nascemos em Ribeirão, no Ipiranga. O povo chamava de ‘barracão’. Sabe por que? Porque lá tem aquela estação antiga.
Eram oito filhos no lar de pai pedreiro e mãe dona de casa. Todo mundo tinha que trabalhar cedo para não faltar o que comer.
Zé diz que, bem por isso, estudou até o terceiro ano e começou na sapataria.
– Ih, minha vida dava um livro! A gente precisa de uma tarde inteira para falar!
Repete mais de uma vez, entre um relato e outro.
Encostada bem na entrada da sapataria, a bicicleta azul desgastado chama a atenção. Mais uma história no “livro do Zé”.
Aos 17 anos, ele ganhou uma bicicleta para encurtar o caminho de casa até a sapataria. Desde então, é seu meio de transporte.
Diz que, todos os dias, anda cerca de 20 quilômetros para ir e voltar de casa, que fica no Simioni, até a sapataria na Vila Tibério.
– Só uma vez que um véio me pegou de belina. Fui para o hospital, mas não machucou. Do resto, não deu nada. É só ter fé em Deus.
A mesma bicicleta está com ele desde 83. Já levou Zé, dois filhos e a esposa para o clube (que não nos ouça a lei de trânsito!) no final de semana.
O caçula, ele fala, já não pegou essa fase.
Veio quando Zé já era dono da própria sapataria, comprada com empréstimo no banco.
O dono pediu 90 contos na época, por volta do fim da década de 80.
– Era um dinheirão! Eu só tinha um pouco de FGTS.
Um cliente que era gerente do banco se propôs a emprestar. Zé conta orgulhoso que tinha três meses para pagar a dívida, mas quitou em um mês e meio.
– Eu e minha esposa trabalhava dia e noite.
Com negócio próprio, depois de 20 anos como funcionário, começou a ganhar dinheiro.
A sapataria funcionou na rua Luiz da Cunha por mais de meio século. Há cerca de quatro anos, entretanto, o dono pediu o prédio e demoliu.
Zé guardou uma pedra, que usa de degrau em frente à nova sapataria, e um tijolo.
– É para eu sempre lembrar sempre de lá.
Na rua Padre Feijó, da mesma Vila Tibério, diz que o movimento é bem maior. E, então, não reclama da saudade.
Zé passou vinte anos trabalhando com o mesmo patrão, sem conversar com ele. Só se falavam no dia de pagamento e, do mais, quando era realmente necessário.
A conduta partiu de Zé, no terceiro ano de trabalho. Carrega a magoa no coração e no dedo da mão direita.
– Preciso largar dessa ignorância minha e visitar ele, que tá doente na cama. Com tudo, eu agradeço, porque foi ele que me ensinou o ofício.
Estava aprendendo a tirar salto de madeira do sapato quando a chave de fenda entrou na mão e atravessou.
– Ele me falou: ‘Se vira aí que eu vou almoçar’. Fui sozinho para o hospital. Naquela época, os médicos não eram especialistas. Ficou com esse defeito no dedo. Mas não parei de trabalhar. Não paro, não.
Diz que hoje mudou o jeito de ser.
– Já bati em cliente aqui, que quis me ensinar a trabalhar. Eu era brigão, né? Mas hoje não sou mais, vixi…
Na sua sapataria, recebe todo tipo de gente com o mesmo jeitão.
– Lidar com o povão tem que ter jogo de cintura. Eu levo tudo na esportiva. Tô com a porta aberta aqui, atendo todo mundo igualzinho.
A vida, é Zé quem diz, é das boas.
– Se eu reclamar, tô pecando. A vida é maravilhosa. Não me falta nada. É de luta. Muita luta. Mas é boa!
Na hora de tirar a foto, ele ensaia colocar uma camiseta e acaba confessando:
– Se pudesse, eu queria tirar sem camisa. Porque é assim que eu fico mesmo. Tem que ser de verdade.
Faz pose ao lado da bicicleta, no balcão de atendimento e diz que, em casa, tem uma foto da antiga sapataria emoldurada na parede.
Conta que até já pensou em se aposentar…
-Eu não parei mesmo por causa dos meus freguês. Eles não querem que eu pare, não. E outra, se ficar em casa, eu fico louco. Eu gosto é daqui.
Quem sabe no feriado!
*Quer traduzir essa história em libras? Acesse o site VLibras, que faz esse serviço gratuitamente: https://vlibras.gov.br/
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