Marlene fundou a Adevirp há duas décadas para dar asas às crianças cegas

23 setembro 2020 | Gente que alimenta

 

Texto e fotos: Daniela Penha

Ilustração: Cordeiro de Sá 

 

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Na casinha de pau a pique onde Marlene foi criada a simplicidade não deixou faltar o principal:

– Minha família sempre nos tratou como presentes de Deus!

Cresceu na roça, rodeada de bichos, plantas e muito amor. Nasceu prematura e precisava de uma estrutura hospitalar que a vida no campo, lá em 1958, não oferecia. Os pais e avós, então, se apegaram à fé que sempre cultivaram.

– A gente considera que minha vida foi um milagre mesmo.

Sobreviveu e sua existência foi celebrada em cada momento. O diagnóstico da cegueira, que veio por volta dos seis meses de vida, não foi limitador.

Com as irmãs a postura foi a mesma. Marlene é a primogênita de três filhas cegas que nunca tiveram suas asas cortadas. Pelo contrário.

– Eu nunca na vida reclamei por não enxergar. Sou agradecida. Se eu fosse nascer de novo, gostaria de nascer cega.

Quando pequenina, quis um cavalo. Seu primo, que era menino e enxergava, tinha. E ela, então, pensou que não poderia ter. Mas o avô logo mostrou o contrário.

– Ele procurou um mansinho e pequeno que desse certo para mim. Disse: ‘não é porque você não enxerga que não pode andar a cavalo’.

Conta que, naquele tempo, a escola na zona rural não acolhia crianças com deficiência. Quando os primos e primas foram estudar, e Marlene e as irmãs ouviram que não poderiam ir, a avó fez de tudo para remediar o choro.

– Ela começou a me ensinar os afazeres do sítio: fazer queijo, cuidar das galinhas.

Mas os pais não hesitaram em mudar para a cidade logo para que as três pudessem ir para a escola. Todas as irmãs somam hoje mais de uma formação universitária.

Marlene, por tanto amor que recebeu, decidiu dedicar sua trajetória a também compartilhar afeto. Há 22 anos, junto com a rotina de professora, criou a Adevirp (Associação dos Deficientes Visuais de Ribeirão Preto e região), onde acolhe 200 pessoas com deficiência visual, de todas as faixas etárias, nutrindo a mesma energia com a qual sua família lhe ensinou a caminhar.

Além de Ribeirão Preto, a Adevirp atende pessoas de 33 cidades da região com uma estrutura pioneira. Esportes, artes, mobilidade, informática são alguns dos conhecimentos transmitidos.

– Meu sonho sempre foi ajudar crianças cegas a descobrirem que são muito especiais. Não são menos do que ninguém.

A entidade é uma das beneficiadas pelo programa Mesa Brasil Sesc Ribeirão. Cadastrada desde 2014, já recebeu 23 toneladas de alimentos, oferecidos aos alunos atendidos durante todo o dia de atividades. Antes da pandemia, a instituição funcionava das 7h30 às 17h30. Agora, adaptaram o trabalho, mas não paralisaram. Seguem!

Adevirp Ribeirão Preto

A casinha onde Marlene Taveira Cintra nasceu e cresceu ficava em Pedregulho, interior de São Paulo. Viveu no sítio até por volta dos 10 anos, quando uma professora visitou sua casa e incentivou os pais a levarem as filhas para estudar em Franca.

A família colocou a mudança em um caminhão e foi em busca do aprendizado.

Moravam longe da escola e a mãe, então, caminhava um tantão para levar o trio a pé. O pai, que sempre trabalhara com gado e agricultura, teve que encontrar novos caminhos. Trabalhou na companhia de luz, com estradas, em uma fábrica de borracha, até conseguir comprar um táxi.

– Até hoje ele se apresenta como ‘O pai das meninas’. Tem muito orgulho!

Hoje, Marlene e as irmãs cuidam dos pais, que já são idosos. Amor retribuído!

Por volta dos 10, 11 anos, ela recebeu uma classificação que poderia reduzir suas asas. Era introvertida, tímida e, então, a professora a taxou como “retardada”, palavra tão triste e de sentido limitador. Não se abateu. Continuou a voar.

– Eu gostei tanto daquela professora achar que eu não estava entendendo nada. Eu pensava: ‘Ela acha que eu não sei?’. Me motivou a ter um amor muito grande pelas crianças. As pessoas acham que por não enxergarmos não somos capazes de sermos felizes, de lutarmos pelos nossos direitos. E nós somos. Eu pude mostrar isso.

Na adolescência, teve seu primeiro emprego em uma loja de calçados e passou a estudar no período noturno.

– Eu sempre quis ir para a universidade, sair de casa, vencer na vida e fazer o bem para as pessoas.

Escolheu cursar Psicologia na Universidade Católica dos Padres Salesianos, pela religião que sempre foi muito presente em sua trajetória. No final da década de 70, se mudou sozinha para Lorena, onde morou na Santa Casa, com a ajuda de uma freira. Ficou conhecida pela cidade.

– Todos achavam diferente uma menina morando no hospital!

Um médico, então, a convidou para dar aulas, conhecer as crianças cegas da periferia. Seu caminho como professora começou. Iniciou um projeto junto à prefeitura da cidade e foi construindo sua carreira.

Terminou Psicologia e já começou Pedagogia. Continuou atuando com a Secretaria de Educação de Lorena, até receber uma proposta para integrar a Secretaria Estadual da Educação em Ribeirão Preto, trabalhando com educação inclusiva.

– Eu chorei muito. Não queria vir. Mas vim para servir a Deus e cuidar das crianças que não enxergam.

Chegou em março de 1990 e fincou raízes.

– Eu fui a primeira professora cega da cidade. No começo foi muito difícil.

Adevirp Ribeirão Preto

Marlene trabalhou na rede estadual e também na rede municipal, se especializando mais e mais. Somou mais de 40 anos como professora. Atuou no Egydio Pedreschi, escola municipal voltada para pessoas com deficiência, até se aposentar, em 2019. Percebia, entretanto, os obstáculos.

– A gente tinha muitas dificuldades. Não havia especialistas, equipamentos adequados, equipe multiprofissional.

Decidiu que era preciso mais.

– Eu vivia fazendo pizzas para vender e comprar máquinas de braile, dar possibilidades que a rede não tinha.

Lançou a semente da Adevirp com muita garra e em pouco tempo a viu florescer. Começaram os trabalhos em março de 1998. Em 2006, ganhou o prédio onde funciona a instituição. Era um espaço abandonado, que exigia uma grande reforma.

Ganhou um fusca, buscou patrocínio para restaurá-lo, fez uma rifa e conseguiu R$ 49 mil para começar a reforma.

– Muitas das crianças que nós atendemos hoje são psicólogos, advogados, profissionais, constituíram família.

Hoje, a instituição conta com infraestrutura e 32 colaboradores para atender seus 200 alunos. Marlene continua batalhando por recursos, patrocínio, meios de continuar e expandir.

– Eu luto para que nossos alunos com deficiência possam contribuir com o orçamento familiar, tenham seus trabalhos, vivam do que produzam e não tenham piedade de si mesmos.

Com a pandemia, foi preciso reformular, proporcionar atendimentos on-line. Ela e a equipe agiram rápido.

– Nós não pensamos ‘o que vamos fazer?’. Mas ‘como vamos fazer?’. Vamos continuar educando, atendendo famílias. Antes eles vinham, agora a Adevirp vai até os seus lares.

Marlene não tem filhos. Diz que escolheu viver uma vida “consagrada”, totalmente dedicada às “suas crianças”.

– Minha vida é isso mesmo! É aqui! O dia em que Deus me chamar vou poder dizer a Ele: para as crianças que o Senhor me deu, eu não fiz tudo o que elas precisavam, mas fiz tudo o que pude.

Aos 62 anos, não cogita parar.

– Quero trabalhar enquanto eu viver!

Compartilha sua história e continua a ensinar.

– A gente veio para o mundo é para ter asas!

As suas, desde sempre, estão a voar, ajudando mais e mais crianças a também alçarem voos.

 

 

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Acesse o site VLibras, que faz esse serviço sem custos:
https://vlibras.gov.br/

 

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