Texto e fotos: Daniela Penha
Ilustração: Cordeiro de Sá
Isidoro acordou no hospital. Foi internado desacordado em uma sexta-feira à noite. O corpo, daquela vez, não aguentou. Parou depois de muitas doses de drogas.
A faculdade de Direito, a esposa, o filho, o trabalho: ele já somava uma coleção de perdas. Percebeu ali, na cama do hospital, que a própria vida poderia ser a próxima da lista.
– Eu percebi que estava muito doente. A droga mudou meu caráter, levou meus valores éticos. Nós não usamos droga, permitimos que ela nos use.
Foram 35 anos de dependência química, 10 internações, um caminho trilhado dia a dia, entre superações e recaídas. Depois do terceiro ano recuperado, sentiu que precisava ajudar outras pessoas que, como ele, somavam lista de perdas.
– Se eu consegui, por que os outros não conseguem? O coração pediu para ajudar.
Há sete anos, então, criou a comunidade terapêutica “Caminho da Paz”, por onde já passaram cerca de 580 homens, com mais de 18 anos, lutando contra a dependência química.
Nem todos conseguiram se recuperar, Isidoro Caldo é franco. O caminho, ele bem sabe, é feito de idas e vindas. Dos acompanhamentos que faz, soma cerca de 160 pessoas que conseguiram, depois do tratamento, uma vida nova. Cada vida importa.
– Eles já chegam sofridos, com perdas irreparáveis. O amor é que derruba todas essas dificuldades.
Tinha 16 anos quando um amigo ofereceu maconha. Provou e percebeu que ficava mais desinibido, era bem aceito pela rodinha de amigos. A cocaína veio depois de dois anos. Em uma noite, não conseguiram comprar maconha e decidiu provar.
– Entrei em um processo progressivo muito devastador.
Foram décadas de uso.
– Eu vivia para a droga, trabalhava para ela.
Por um tempo, conseguiu manter as aparências. Entrou na faculdade de Direito em 1982, aos 26 anos, mas deixou o curso pela droga. Faltava às aulas, usava o dinheiro para a cocaína. Foi manobrista, bancário até se tornar funcionário da prefeitura de Ribeirão entre 1979 e 1980. Se casou em 1993, após 12 anos de namoro. Teve um filho em 1994, aos 34 anos.
– Eu mentia o tempo todo. Pegava atestados para faltar do trabalho. Mal sabia que estava cavando minha cova…
Quando o dinheiro começou a apertar, veio o crack.
– A padra do crack custava R$ 5. Comecei por querer mais e mais. Até que você vive por ele. Começa a total degradação. Tira as coisas de casa, larga tudo, vive à margem.
Quando tinha por volta dos 43 anos deixou a família e foi viver perto da biqueira. Passou dois meses morando na rua.
O caminho entre decidir mudar e conseguir não é fácil. Passou por 10 internações, durante seis anos. Saía de uma comunidade com a sensação de estar recuperado, mas vinha a recaída.
– Eu precisei trabalhar meus desvios de conduta, meus valores éticos e morais.
Conseguiu refazer os laços com a esposa e o filho que é “sua maior obra”, como diz. Há 10 anos está recuperado, em abstinência, como diz.
– É necessário que haja condições mínimas para se recuperar, o ardente desejo de se libertar e a compreensão de que as perdas não valem a pena.
A comunidade terapêutica Caminho da Paz foi fundada em junho de 2013. Isidoro se aposentou e decidiu destinar seu tempo a ajudar outras pessoas. A esposa é sua companheira na trajetória.
Na comunidade são atendidos 30 homens, por seis meses de tratamento em um programa terapêutico de quatro estágios. Há um ano, Isidoro e a esposa decidiram ampliar os trabalhos.
– Para muitos, não é possível o fortalecimento do vínculo com a família. Então, quando o tratamento acabava, eles não tinham para onde ir. Todo o trabalho poderia ser jogado fora.
Fundaram, então, uma república, que funciona como casa de passagem para que dependentes químicos que já passaram pelo tratamento possam ter acolhimento e apoio para restabelecerem suas vidas. Nas duas unidades são acolhidas 22 pessoas, para a alegria de Isidoro.
– Eu sonhei muito com esse projeto. Como você pega alguém que está tratado e abandona?
As três unidades do Caminho da Paz são parceiras do programa Mesa Brasil Sesc Ribeirão. Desde 2016 já receberam 16,7 toneladas de alimentos, que vão para a mesa de pessoas em recuperação. Só neste ano já foram 2,5 toneladas!
– Eles vêm desnutridos da rua. Passam noites e dias sem dormir. Eu me preocupava muito. Como vamos levar o alimento, pagar o aluguel, manter tudo? Temos muita gratidão pelo Mesa Brasil.
Isidoro carrega a gratidão em doses altas.
– Hoje a minha vida tem sentido. Me sinto preenchido em saber que posso ser espelho para quem está precisando, posso levar esperança.
Aos 60 anos, a rotina é preenchida pelo trabalho voluntário que faz na instituição dia e noite. Quem precisa de ajuda não escolhe hora, afinal. Muitas e muitas vezes sai na madrugada para socorrer alguém, levar amparo.
Com tanto amor que distribui, se sente o mais recompensado.
– O maior ganhador sou eu. Esse é o espírito de doar. Quanto mais eu dou, mais recebo. Chego em casa com a consciência tranquila de poder contribuir com a vida de alguém.
Ao final do dia, a sensação de mais um dever cumprido. Um a mais, a cada passo.
– Hoje eu tenho a certeza de que ao final do dia eu tenho para onde voltar… é amar em atitudes, compreensão, companheirismo.
Clique AQUI e conheça mais sobre o programa Mesa Brasil Sesc São Paulo!
*Quer traduzir essa história em libras?
Acesse o site VLibras, que faz esse serviço sem custos:
https://vlibras.gov.br/
Orgulho desse trabalho
Muito abençoado por Deus o nosso amigo Isidoro
Obrigada pelo artigo. Muito importante nos dias de hoje.
Que história inspiradora, principalmente a frase “Nós não usamos droga, permitimos que ela nos use.” é muito impactante. Também conheço todos os desafios e dificuldades por atuar de forma direta ajudando as pessoas no combate as drogas. Obrigado por compartilhar essa história incrível.