Recuperado, Isidoro criou comunidade terapêutica para ajudar dependentes químicos

4 novembro 2020 | Gente que alimenta

 

Texto e fotos: Daniela Penha

Ilustração: Cordeiro de Sá 

 

Isidoro acordou no hospital. Foi internado desacordado em uma sexta-feira à noite. O corpo, daquela vez, não aguentou. Parou depois de muitas doses de drogas.

A faculdade de Direito, a esposa, o filho, o trabalho: ele já somava uma coleção de perdas. Percebeu ali, na cama do hospital, que a própria vida poderia ser a próxima da lista.

– Eu percebi que estava muito doente. A droga mudou meu caráter, levou meus valores éticos. Nós não usamos droga, permitimos que ela nos use.

Foram 35 anos de dependência química, 10 internações, um caminho trilhado dia a dia, entre superações e recaídas. Depois do terceiro ano recuperado, sentiu que precisava ajudar outras pessoas que, como ele, somavam lista de perdas.

– Se eu consegui, por que os outros não conseguem? O coração pediu para ajudar.

Há sete anos, então, criou a comunidade terapêutica “Caminho da Paz”, por onde já passaram cerca de 580 homens, com mais de 18 anos, lutando contra a dependência química.

Nem todos conseguiram se recuperar, Isidoro Caldo é franco. O caminho, ele bem sabe, é feito de idas e vindas. Dos acompanhamentos que faz, soma cerca de 160 pessoas que conseguiram, depois do tratamento, uma vida nova. Cada vida importa.

– Eles já chegam sofridos, com perdas irreparáveis. O amor é que derruba todas essas dificuldades.

Caminho da Paz Ribeirão Preto

Tinha 16 anos quando um amigo ofereceu maconha. Provou e percebeu que ficava mais desinibido, era bem aceito pela rodinha de amigos. A cocaína veio depois de dois anos. Em uma noite, não conseguiram comprar maconha e decidiu provar.

– Entrei em um processo progressivo muito devastador.

Foram décadas de uso.

– Eu vivia para a droga, trabalhava para ela.

Por um tempo, conseguiu manter as aparências. Entrou na faculdade de Direito em 1982, aos 26 anos, mas deixou o curso pela droga. Faltava às aulas, usava o dinheiro para a cocaína. Foi manobrista, bancário até se tornar funcionário da prefeitura de Ribeirão entre 1979 e 1980. Se casou em 1993, após 12 anos de namoro. Teve um filho em 1994, aos 34 anos.

– Eu mentia o tempo todo. Pegava atestados para faltar do trabalho. Mal sabia que estava cavando minha cova…

Quando o dinheiro começou a apertar, veio o crack.

– A padra do crack custava R$ 5. Comecei por querer mais e mais. Até que você vive por ele. Começa a total degradação. Tira as coisas de casa, larga tudo, vive à margem.

Quando tinha por volta dos 43 anos deixou a família e foi viver perto da biqueira. Passou dois meses morando na rua.

O caminho entre decidir mudar e conseguir não é fácil. Passou por 10 internações, durante seis anos. Saía de uma comunidade com a sensação de estar recuperado, mas vinha a recaída.

– Eu precisei trabalhar meus desvios de conduta, meus valores éticos e morais.

Conseguiu refazer os laços com a esposa e o filho que é “sua maior obra”, como diz. Há 10 anos está recuperado, em abstinência, como diz.

 – É necessário que haja condições mínimas para se recuperar, o ardente desejo de se libertar e a compreensão de que as perdas não valem a pena.

Caminho da Paz Ribeirão Preto

A comunidade terapêutica Caminho da Paz foi fundada em junho de 2013. Isidoro se aposentou e decidiu destinar seu tempo a ajudar outras pessoas. A esposa é sua companheira na trajetória.

Na comunidade são atendidos 30 homens, por seis meses de tratamento em um programa terapêutico de quatro estágios. Há um ano, Isidoro e a esposa decidiram ampliar os trabalhos.

– Para muitos, não é possível o fortalecimento do vínculo com a família. Então, quando o tratamento acabava, eles não tinham para onde ir. Todo o trabalho poderia ser jogado fora.

Fundaram, então, uma república, que funciona como casa de passagem para que dependentes químicos que já passaram pelo tratamento possam ter acolhimento e apoio para restabelecerem suas vidas. Nas duas unidades são acolhidas 22 pessoas, para a alegria de Isidoro.

– Eu sonhei muito com esse projeto. Como você pega alguém que está tratado e abandona?

As três unidades do Caminho da Paz são parceiras do programa Mesa Brasil Sesc Ribeirão. Desde 2016 já receberam 16,7 toneladas de alimentos, que vão para a mesa de pessoas em recuperação. Só neste ano já foram 2,5 toneladas!

– Eles vêm desnutridos da rua. Passam noites e dias sem dormir. Eu me preocupava muito. Como vamos levar o alimento, pagar o aluguel, manter tudo? Temos muita gratidão pelo Mesa Brasil.

Isidoro carrega a gratidão em doses altas.

– Hoje a minha vida tem sentido. Me sinto preenchido em saber que posso ser espelho para quem está precisando, posso levar esperança.

Aos 60 anos, a rotina é preenchida pelo trabalho voluntário que faz na instituição dia e noite. Quem precisa de ajuda não escolhe hora, afinal. Muitas e muitas vezes sai na madrugada para socorrer alguém, levar amparo.

Com tanto amor que distribui, se sente o mais recompensado.

– O maior ganhador sou eu. Esse é o espírito de doar. Quanto mais eu dou, mais recebo. Chego em casa com a consciência tranquila de poder contribuir com a vida de alguém.

Ao final do dia, a sensação de mais um dever cumprido. Um a mais, a cada passo.

– Hoje eu tenho a certeza de que ao final do dia eu tenho para onde voltar… é amar em atitudes, compreensão, companheirismo.

 

 

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4 Comentários

  1. Vera Lígia Salomão

    Orgulho desse trabalho

  2. Alencar

    Que história inspiradora, principalmente a frase “Nós não usamos droga, permitimos que ela nos use.” é muito impactante. Também conheço todos os desafios e dificuldades por atuar de forma direta ajudando as pessoas no combate as drogas. Obrigado por compartilhar essa história incrível.

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